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18 de julho de 2004
A IMAGEM COSTURA O CAOS
A produção audiovisual americana é um assunto de Estado e está sob severa vigilância do Império. Serve para projetar a hegemonia na nação sobre todos os outros não-países, do deserto do Sinai à Amazônia, terras sem História, pelo menos a História que interessa, na conceituação definitiva de Ranke, papa da historiografia moderna do século 19. Para que haja eficácia, é preciso grudar o espectador na cadeira, basear o roteiro na ação. Isso só se consegue se as cenas forem curtas, portanto dependem da violência, de pessoas agressivas e impacientes. Não há gente cordata nesse universo porque a cordialidade engessaria a seqüência ágil dos eventos. Isso cria um paradoxo, pois a ação vertiginosa significa caos e como costurar o caos? Alguns truques resolvem a questão.
LISTAS - A bandeira listada dos Estados Unidos é o exemplo da imagem bem resolvida. É feita de listas, porque a lista é a representação de uma ruptura. Por isso os prisioneiros usam uniforme listado, porque significa que eles romperam a ordem e são identificados por essa quebra, esse rompimento. As listas da faixa de segurança no trânsito diz o mesmo: ali o trânsito precisa parar de fluir. Historicamente, as listas significam revolução. Não apenas a bandeira americana, fruto da insurreição contra a Inglaterra, está dividida em listas. A bandeira da Revolução Constitucionalista de 1932 também. São Paulo queria a ruptura de um regime de exceção, queria a volta ao republicanismo clássico, por isso usou a bandeira listada. O ícone nacional americano é bem resolvido porque acima das listas estão as estrelas, que mostram a nação unida depois da ruptura, ou a partir dela. Esse equilíbrio que se sobrepõe ao caos é fundamental na iconografia do Império. Por isso é obrigatório que em cada filme ela apareça, limpa ou suja, inteira ou aos frangalhos. Ela está sempre presente, seja qual for a situação. A bandeira mostra a importância da costura do caos por meio de uma imagem. Isso se desdobra numa infinidade de filmes, séries etc. A ação permanente levaria ao caos não fosse o esforço do Estado em manter a escrita. Vejam o caso da série de filmes de Máquina Mortífera. Mel Gibson está rompido com o mundo real, é um suicida que enlouqueceu de tanta ação. Quem o salva é seu companheiro, interpretado por Danny Glover, homem com família e prestes a se aposentar. A imagem de um parceiro certinho ao lado de um psicopata mostra como a ação leva o equilíbrio para a ruptura e como depois volta ao estado de normalidade, já que Gibson acaba casando com René Russo, nos filmes seguintes. Tudo resolvido. O caos, ou a destruição dos cenários e todos os objetos que estão nele, também serve para incentivar os consumidores a trocarem de produtos. O mundo descartável interessa à produção feérica de novas necessidades, desde que não ameace a integridade imperial. Para isso serve o happy-end, quando o que foi perdido no rastro da destruição se recompõe para novas aventuras, ou seja, novos produtos. A série Duro de Matar que o diga. Segundo um clássico ensaio sobre o magnífico cinema de Jerry Lewis, seus personagens não conseguiam manipular a diversidade de objetos fabricados para o consumo, o que era fonte das suas trapalhadas. Sua solução era simples: colocava tudo na bolsa de um aspirador de pó e depois introduzia uma agulha nesse saco enorme para explodir o conteúdo na cara das pessoas artificiais. Grande Jerry.
ROCK - Os 50 anos do rock mostram a vitória da reação. O rei do Rock, o ex-caminhoneiro Elvis Presley, resolveu homenagear a mãe e gravou a música que fundou um movimento de rebeldia. O que fez o Império? Cortou o cabelo do rei, colocou-o numa farda, transferiu-o para a Alemanha ocupada do pós-guerra e depois jogou-o primeiro nos filmes havaianos dulcíssimos e mais tarde na decadência exagerada e suicida de Las Vegas. A lição é clara: rebole para você ver! Tente romper a situação conservadora do poder por meio de uma rebeldia no comportamento e na cultura. Faça a síntese da música negra e a coloque na juventude branca para ver o que lhe acontece. Mas o rock gerou subprodutos, a revolução via Beatles e seus seguidores, e até mesmo o regate do punk e outros esforços rebeldes. Pois o cinema fez o seguinte: colocou os cabeludos, todos, como bandidos. Os Hell Angeles serviram como uma luva para a mão de ferro do Estado. Bandidos cabeludos, ou com rabinho de cavalo, de motos, barbudos, fizeram a festa da produção audiovisual conservadora. Easy Rider é um filme profético, pois descobriu cedo que os novos heróis estavam fritos. O resultado desse massacre cultural e físico (os grandes rebeldes, como Jimi e Janis, morreram cedo) é a música tecno, quando tudo foi resolvido por meio de uma batida monótona que deixa a meninada em eterno ecstasy. E o que foi feito com o cinema americano de vanguarda, encarnado em Arthur Penn, principalmente, autor de Juventude Transviada e Caçada Humana? O que foi feito da revolução da Godard, que implantou o cinema cultural, e a nouvelle vague, que acabou com a seqüência natural das imagens? Foi tudo assimilado. As cenas não terminam mais apagando as luzes, o flash-back é lugar comum (sem a diferenciação da imagem tremida, como acontecia antigamente). Tudo caiu na vala.
PALAVRA - É impressionante como a imagem, como foi previsto nos anos 60, domina o mundo hoje. Só não contavam que a palavra (que participa da imagem, via Internet), voltasse a ser hegemônica. Temos hoje muitos milhões de escritores, nenhum anônimo, todos bem identificados, que em sites, blogs e orkuts escrevem freneticamente. Vejo que o orkut é uma maneira de organizar o caos, e de projetar a imagem pública da individualidade, levá-la a resgatar a história de cada um ou a reforçar ou criar laços comunitários difíceis de serem conseguidos ao vivo. A imagem sempre dá a melhor pista do que está realmente ocorrendo. Descobri, por exemplo, porque os americanos não conseguem entender o futebol. Não só porque chamam de futebol um jogo onde a bola, a maior parte do tempo, depende das mãos. Mas porque eles querem forçar o futebol inglês (e agora nosso) a ser como o deles. Por isso seus filmes sobre o assunto caem sempre no mesmo equívoco: os jogadores avançam para a linha adversária de roldão, como eles fazem com o jogo deles. Fica uma excrescência, pois no nosso futebol não tem ninguém com armadura tentando travar o adversário. O jogo é feito com inteligência, não na base da força bruta (quando há, é falta) . Pelé já explicou em vão para os americanos que um jogador do futebol de verdade pensa o tempo todo, até mesmo quando não está com a bola. Não vale pegar o biroço, bater em todo mundo e levar a Leonor para casa. Mas não cai a ficha. Talvez esteja aí o motivo de eles acharem o nosso jogo coisa de mulher. Sorte para as mulheres americanas, que batem um bolão. O duro é saber que eles chamam o nosso jogo de soccer. Para mim, soccer é pênalty.
RETORNO - Na Folha, o filósofo Paulo Arantes fala claro sobre dívida e ONGs: "A economia nacional resume-se hoje ao serviço da dívida para assegurar a renda mínima do capital, como diz o João Sayad, o qual obviamente --o capital, não o João-- não tem o menor interesse que ela algum dia seja paga. Seria o caso até de processar o Estado por lucros cessantes. Deu-se com isso a progressiva terceirização de funções do Estado por uma fauna de ONGs, ressalvadas as boas almas de praxe. Verdadeiras máquinas de sucção e repasse de verba, e tome informalização do trabalho. Tudo isto é sabido, não é de hoje que o sopão do terceiro setor é engrossado por patronesses ao lado de cooperativas de fachada, banqueiros-cidadãos, corretores de inclusão social e por aí afora, nessa nova fronteira de negócios".
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