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24 de abril de 2004

VISITAS FORA DE HORA

No meio do expediente, aí pelas três da tarde, um convite: dar um pulo no bar em frente. Aconteceu várias vezes. Foi assim que conheci pessoalmente Paulo Leminski, que me visitou na redação da revista Senhor e repartiu comigo uma cerveja no Barba, o mitológico bar em frente da Editora Três, na Lapa de Baixo. Ou o mímico Ricardo Bandeira, que me atraiu para uma conversa frente a vasto copo de algo sem nome (que era meio avermelhado). E também teve a vez de Cacaso, que preferiu conversar dentro da Folha de S. Paulo, sem tentar me puxar para qualquer tipo de mesa fora do trabalho.

COISA - Naquele tempo eu era coisa na imprensa e a todos recebia. Descobri, por exemplo, que nada saía sobre os Novos Baianos na grande imprensa porque nada saía na grande imprensa. Ou seja, o boicote era espontâneo, parecia combinado e era decisão das editorias de cultura. Nada havia, nos andares do patronato, contra a baianada. Publiquei (sem tomar conhecimento do boicote nem consultar patrão nenhum) na Ilustrada um artigo sobre Baby Consuelo, outro sobre Pepeu e outro sobre todo o grupo. De quebra, abri vasto espaço para A Cor do Som, filhote superdotado daquela junção de talentos. Ficaram encantados. Até hoje não descobri porque havia o boicote. De outra feita, estive num ensaio do grupo Oficina, que também naquela época (1977/78) sofria execrável boicote. O Zé Celso chegou a levar um susto: “A Folha está aí?”, perguntou. Estava. Era ieu. Dei capa na Ilustrada. Fiz também extensa matéria sobre outro assunto proibido, punk rock, que naquela época era novidade (o título era: Punk rock: e o Brasil com isso?). Sem falar que guindei Rita Lee a assunto sério de revista semanal, abordando-a pela sua contribuição cultural e de comportamento. Na Istoé, fiz a primeira matéria sobre o filme de Hector Babenco, Pixote, escancarando a foto de Marilia Pêra amamentando Fernando Ramos da Silva (de autoria de Ayrton de Magalhães). Comparecia em shows de artistas desconhecidos, na periferia e dava destaque. E tratava todo mundo da mesma forma: fazia análise engajada, batendo quando achava que devia bater. Destaquei, entre os grandes, Luis Melodia (o que arrancou elogios agradecidos do seu protetor, Wally Salomão), Raul Seixas (pouco considerado pela imprensa, na época), Roberto Carlos (que provocava as mesmas resenhas, falando mal dele; inovei, abordando-o com seriedade). Sempre fui desafinado. Não escrevia música, escrevia texto.

LEITURAS - Não foi desta vez que minha entrevista para o programa Leituras, da TV Senado (canal 68 da TVA) foi ao ar. Vamos aguardar. Sorte que o programa deste fim-de-semana destaca, em longa entrevista a Mauricio Melo Junior, a professora de música Liana Justus, que diz algo que sempre desconfiei mas que agora ela dá status teórico: a de que a música brasileira é a mais rica do mundo por ter em suas raízes a música clássica. Isso pode surpreender, mas nem só de bachianas brasileiras vive o Brasil. Você pega a parceria Bach-Vinicius, você pega a Ave-Maria do Morro de Herivelto Martins, você pega todo o clima de partituras e conservatórios musicais e ensino de música no sistema público no início do século 20 e fim do 19 e você terá grandes artistas formados na música clássica (lembrem o pianista Ary Barroso, lembrem Zé Gomes, que revolucionou a música popular e é concertista de Villa Lobos). Liana lembra que a primeira música de carnaval, O Abre-Alas, foi composta por uma maestrina, a Chiquinha Gonzaga. Pois tudo isso foi jogado no lixo em favor das porcarias importadas (e não do refinamento importado), dessas coisas chamadas raps ou hip hops, que são esgares mecânicos de ruídos implantados pela nossa falta de soberania, pela entrega que se fez do território e do povo para os poderes fajutos e anti-culturais do Império. Transformamos Bach em música popular, mas nossa música popular não é bachiana, é brasileira. O rap, ao contrário, transforma todo mundo em rappers, e nada dá em troca - a música deixa de ser nossa, passamos a ser seus clones pobres. Liana diz que tocou Vivaldi, Mozart e Carmina Burana na periferia de São Paulo e todos adoraram, chegaram a chorar em sua maior parte. “A música desperta compaixão, que é o sentimento da solidariedade”, diz Liana, na sua simples e eficiente receita contra a violência. O programa será repetido hoje, sábado e amanhã, domingo, em horário nobre. Ligue a partir das 20 horas. É minha receita anti-zap. Descubro no Google, no site da revista Bravo!, que o livro de Liana Justus é “ Formação de Platéia em Música (Fundação Cultural de Curitiba, 208 págs., R$ 45), que agora vem com um alentado CD-ROM, e traz, entre tantas outras informações, mais de 800 imagens, um filme digital que apresenta todos os instrumentos de uma orquestra sinfônica e trechos de várias peças musicais”.

REGRESSÃO – Cacaso, autor do clássico poema minimalista “nasceu/fudeu”, tinha o cabelo cortado e penteado a Principe Valente. Era suave, doce, denso, absolutamente crítico e talentoso. Leminski era um anarquista em tudo, principalmente nos gestos. Falamos sobre literatura e autores. Ricardo Bandeira olhava para o infinito e elogiava meu primeiro livro trocando o nome do título (em vez de Outubro, Outono, mas isso já faz parte do folclore). Moraes Moreira, Galvão, Paulinho Boca de Cantor passeavam na garoa de São Paulo e eu estava junto. Essa é a vantagem de um jornalista sem importância: estar presente nos momentos importantes da vida nacional. Ninguém presta atenção no observador anônimo, o passageiro das redações e cidades, mas um belo dia ele desova suas memórias, ou um romance baseado no que viveu. Então, o que não existe em nenhum lugar a não ser ali, naquele território de linguagens ocultas, assume um lugar qualquer. Normalmente não é grande coisa, mas é um milagre, o que o torna único. Os resenhistas, claro, estão ocupados com outros afazeres (como escrever infinitamente a mesma matéria sobre as crianças na Bienal). Destacam sempre os mesmos autores e esquecem aqueles que abriram as comportas do jornalismo cultural numa época que deveria ter sido muito mais fechada e medíocre. Pois não era. O jornalismo cultural dos anos 70 na grande imprensa dá de dez no de hoje. Regredimos. Ou melhor, regrediram.

RETORNO - Logo que terminei a edição de hoje, liguei no SPTV. Lá veio a matéria da Bienal: as crianças, os palhaços e os unicos autores abordados, Ziraldo e Mauricio de Souza. As crianças são atraídas para o não-livro: o joguinho eletrônico no computador, a performance do palhaço, o conteúdo fundado basicamente em imagens e não em textos. Ainda não se deram conta do recado explícito do best-seller Harry Potter: livrões grossos, cheios de histórias e não nheco-nhecos desenhados sem palavras. Mas não adianta. É um desespero só. Isso não mudará?

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