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17 de abril de 2004
A SÍNDROME DE BUENOS AIRES
Falou em livro no Brasil, lá vem a história de Buenos Aires ter mais livrarias do que o Brasil todo, acompanhada pela majestática besteira “o brasileiro não lê”. Esse confortável álibi para justificar a exclusão social – e distorcer o mercado de livros - é repetido sem provas, há décadas, tendo se transformado numa espécie de idiotice oficial da ignorância bem fornida. Esquece-se que a economia da Argentina inteira é menor do que a do estado de São Paulo e que desde a revolução de Monteiro Lobato os pontos de vendas de livros multiplicam-se no Brasil. Até estação de metrô vende livro, sem falar nas papelarias, bazares, lanchonetes, super e hipermercados. E quando chega uma Bienal do Livro, explodindo de fartura, as asneiras voltam a se repetir, como se fosse importante mantermos uma auto-estima baixa, a serviço dos espertinhos de sempre.
O BRASILEIRO LÊ! – Claro que em relação à gigantesca população deste país-continente, com péssima distribuição de renda, escolas insuficientes, livrarias idem, há muito o que andar. Mas o pouco que temos é MAIOR do que existe em vários lugares conceituados. Nossa classe média é o triplo da classe média da Suíça, o dobro da que existe na França e bate, em números, em todos os países da América do Sul. Além disso, lê-se em todas as classes sociais, e muito. Multiplicam-se as bibliotecas populares, cada cidadezinha começa ter seu ponto de venda desse produto e muito comerciante sabe que, estando hoje na vanguarda, o livro está começando a vender mais do que as revistas, que estagnaram no tempo com seus falsos conteúdos cheios de “dicas” de como dar na esquina, entre outras preciosidades didáticas. Há uma fome de conhecimento, buscado com paixão por uma população que foi abandonada às própria sorte e que mantém o país de pé, funcionando, e que é saqueado diariamente por uma política econômica ditada com crueldade e apresentada sempre com sorrisinhos anódinos de superioridade. As editoras estão acordando para a essência da sua atividade, que é focada no autor e sua criação e não no marketing equivocado ou na oferta gigantesca de porcarias para um público que pretensamente “não lê”. O que é preciso mudar é dar uma chance ao livro bom, investir nele e não em porcarias. A Folha de hoje traz um artigo dizendo que o leitor da Bienal é um envergonhado que prefere a impessoalidade do evento a ser humilhado nas livrarias. É impressionante a capacidade de se dizer coisas como essas.
GORKI A PREÇO DE BANANA - Tenho ido na Bienal diariamente e não vi ninguém envergonhado. As pessoas são desenvoltas e procuram os melhores títulos e ofertas. Existe Maximo Gorki a dois reais (como descobriu a graduando em Letras na USP, Tabata Marques, e colaboradora fixa da W11 Editores), chovem promoções como descontos de até 50% por uma hora etc. Claro que existe muita chatice de marketing sacana, mas o grosso da Bienal é focada na diversidade dos autores e livros – portanto não se justifica dizer que essa é uma Bienal da mesmice por destacar os mesmos autores de sempre (o que vale não é a programação oficial apenas, mas o que realmente as editoras estão oferecendo, e o que está se oferecendo é trabalho duro, suado, feito com ânimo - ou seja, o que vale é a percepção desse movimento) . Outra impropriedade do referido artigo é cair na tentação de dizer que "a literatura sempre foi mantida numa aura de sacralidade”. Não é verdade. Shakespeare fazia teatro popular (seria patético falar na sua qualidade, mas é o que ele oferecia: alta cultura para a população), Garcia Marques (o maior escritor do mundo) vende milhões de exemplares. A literatura vem da cultura oral, aquela dita em voz alta para a massa. Uma parte dela passou pelo processo de erudição, mas mesmo autores considerados difíceis costumam se impor e vender muito. A Bienal atrai gente não porque é estuário de leitores envergonhados, que fogem da pretensa sacralidade livresca, mas porque lê-se como nunca no Brasil e um evento desses é a oportunidade de os leitores terem uma visão completa do que as livrarias e outros pontos de venda estão oferecendo. O que estraga é mentalidade de que somos uma nação de idiotas iletrados e por isso mereceríamos o excesso de oferta de porcarias (produzidas em função desse equívoco), já que “esse povinho gosta mesmo é disso”. Esse elitismo de galinheiro atrapalha, mas não vence a irresistível tendência de um povo que lê, e lê muito, e fica a par da criação intelectual brasileira e internacional e vai incomodar cada vez mais, porque essa informação rompe barreiras, muda políticas e transforma o mundo. Falar o contrário é apostar no conservadorismo, no narizinho empinado, na exclusão permanente.
UM DIA E TANTO – Ontem, sexta-feira, dei uma entrevista ao vivo pelo telefone para a radio Cultura de Porto Alegre e outra gravada para o jornalista Mauricio Melo Junior, da TV Senado, que irá ao ar nos próximos dias, ainda não tem data certa. Admiro Mauricio porque, além de manter há três anos talvez o único programa especializado em livros da TV brasileira (o que diz tudo do preconceito que existe contra os leitores brasileiros, pois deveríamos ter um programa desses em cada rede) ele é um exímio entrevistador, profundo, que não se entrega a nenhuma pergunta fácil. À noite, o estande da W11 foi honrada com a visita de dois excelentes jornalistas, Cassiano Elek Machado e Marcelo Pen, da Folha. Pessoas finíssimas que foram visitar nosso diretor Wagner Carelli e conversaram conosco sobre a Bienal e o mercado, num ambiente maravilhoso que a maior exposição da cultura de livros do Brasil proporciona, que é o convívio entre profissionais do ramo, autores, jornalistas, leitores em geral. Foi um dia e tanto para quem está lançando seu primeiro romance – Universo Baldio - e prepara-se para lançar seu quarto livro de poemas daqui a algum tempo. Vamos em frente.
RETORNO - 1. O que realmente atrapalha na Bienal são os preços de acesso ao evento: oito reais para entrar, doze reais para estacionar. O que não atrapalha é a organização: talvez essa seja a mais bem organizada Bienal que já visitei.
2. Você conhece alguém que não tenha uma estante de livros na sua casa? E quantos você conhece que tem uma biblioteca? Poderão dizer: mas isso é uma minoria. Não é, cara. Somos milhões. Más notícias para os idéias-fixas: não somos uma elitezinha letrada, somos uma massa impressionante de leitores neste gigante das letras que é o Brasil. Ou seja: não estamos numa fazenda colonial, estamos no meio de uma revolução industrial, um ambiente onde a Internet funciona como fomentadora de mais leitura.
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