Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
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29 de fevereiro de 2004
A HIERARQUIA DOS GESTOS
Na literatura, o movimento do corpo é descrito e imaginado. No cinema e na TV, o gesto explícito é a vitrine dos nossos erros, já que os acertos não dependem do desenho feito pelo andar, linhas do rosto e trejeitos: a sinceridade vira pelo avesso a máxima de que somos o que parecemos. Somos o que somos quando não queremos parecer alguma coisa – nesse caso, o gesto faz parte do nosso encanto. Quando fingimos – forçamos os gestos – nos transformamos num conjunto de posturas artificiais. O mais trágico é quando os gestos denunciam a posição social que cada um ocupa na pirâmide das exclusões.
LITTLE BROTHER - O programa da Globo, Big Brother, é uma pequena loja de horrores. Um grupo é escolhido para exibir uma sucessão de gestos didáticos, que ensinam as pessoas a gozar a vida e a não trabalhar. Eles se deitam, se agridem e se fuzilam: toda hora tem “paredão”. É como se fossem ratos de laboratório, a provar a pesquisa científica dos idealizadores desse pesadelo, de que brasileiro é mesmo vagabundo, gosta de mordomia, odeia o próximo e só quer se dar bem na vida. Esse conjunto de conceitos é reforçado pelas cenas doentias, todas elas ostentando um falso improviso, quando está na cara que foram escritas, tanto é que tem personagem que não consegue dizer a fala direito (como no caso das crianças nos comerciais com aquela voz forçada, pois a meninada não está em condições de articular toda a complexidade e oportunismo da mensagem, o que inclui estrutura de frase, entonação etc). Costuma-se dizer que o povo gosta mesmo disso tudo, pois o Ibope (quá!) está alto. Me coloquem em horário nobre falando abobrinhas numa rede poderosa que terei Ibope alto. É tudo uma questão de oportunidade e horário. Sempre tenho a impressão que os programadores esperam dar traço na pesquisa (lá pela uma da manhã) para então colocar um belo documentário (como Roger and me, de Michael Moore, que passou na madruga do SBT) ou algum clássico (como acontece uma vez por semana na Bandeirantes, que ainda tem a manha de corromper a obra retaliando-a em blocos onde os intervalos são preenchidos com mídia interna, propaganda exaustivamente repetida sobre as outras atrações da rede). O público não tem opção, tem porcarias na hora em que tenta ver alguma coisa – e ainda é chamado jocosamente de “ô da poltrona” ou “você aí do sofá, que fica parado”. A malandragem costuma se deitar quando tem algum trabalhador pela frente. Principalmente quando está no poder.
OMBROS, CARAS E BOCAS – O entusiasmo de estar diante das câmaras falando qualquer coisa costuma deixar marcas, como o frenético sacudir de ombros, quando há a intenção de reforçar o que está sendo dito (normalmente um conjunto de redundâncias ou de informações plantadas). É o recado claro do exibicionismo, falta de assunto e desimportância da reportagem. Outro gesto é o leve inclinar para a frente, que acontece no final das frases do atual jornalismo de breque - aquele que também faz uma paradinha no meio frase para fazer suspense ou preparar o pobre do telespectador para a emissão do crédito. Acho até que, para os repórteres de TV (de todo o mundo) o mais importante é dizer o próprio nome. Não importa a informação, o que vale é “Fulano de Tal, de Caixa Prego". O recado também é claro: “Eu sou o maior, o mais importante. Dane-se a reportagem. Você aí da poltrona, admire-me.” Pois o mundo, caro leitor (você e eu) existe para admirá-los. E cuidado, senão você toma o lugar daquelas criaturas que vivem alcançando coisas ou aturando quem está hierarquicamente acima. O cara que alcança a toalhinha para o campeão de tênis, o lavrador que fica virando a forragem enquanto o repórter, de microfone na mão, explica como a coisa funciona, sem falar na plêiade de empregadas nas novelas, todas uniformizadas e aturando desaforo das starlets. Isso chama-se reiteração permanente dos papéis sociais.
O CORPO TODO – O gesto favorito dos nossos estadistas de estádio (como diria Ulysses Guimarães) é virar a cabeça junto com o tronco. Sinal que sugere integridade física, ou seja, não se torce o pescoço para olhar ninguém, vira-se inteiramente como a proclamar autoridade e expressar com esse gesto que se está ali para mandar e ensinar, e jamais para escutar. Nisso FHC e Lula também se parecem. A rigidez de ombros que ostentam significa que são rochedos. Em volta deles, pululam como ondas os ombros frenéticos da mídia, a lamber-lhes as ostras.
25 de fevereiro de 2004
O FALSO CINEMA DE AUTOR
Brian de Palma e Martin Scorsese - e sua versão ainda mais perversa, Quentin Tarantino – substituíram o espaço criado nos anos 60 e 70 por inventores como Arthur Penn e Sam Peckinpah, e por meio de um cinema vazio e apelativo tentam assumir a postura de autores, quando não passam de comerciantes da pior qualidade com pose de pais da matéria. Enquanto isso, a linhagem que tem Nickolas Ray como estrela maior encontra em Clint Eastwood sua mais bem acabada realização. Já David Lean e Fred Zinnermann continuam sós, ocupando a olimpo da genialidade sem terem deixado descendentes.
TUDO DESÁGUA NELE – Scorsese costuma pontificar na televisão como uma espécie de historiador do cinema, com um detalhe: o de que toda a maravilhosa produção cinematográfica italiana, de Vittorio de Sica a Fellini, de Rosselini a Visconti, acaba redundando na própria obra dele, Scorsese. Não é muita pretensão? Basta aturar o horrendo Taxi Driver, um filme que confunde transgressão estética com a instauração de uma indústria da maldade e da perversão, para ver que tipo de mente doentia tem esse sujeito. O cinema dele suga o espectador para devolver nossa alma em farrapos, e isso não pode ser encarado com um elogio (é moda aplaudir o horror como se fosse vanguarda). Tem sua porção italianinha com os Bons Companheiros, que ele tenta misturar comédia com tragédia, tentando imitar o “truque “ (na versão dele) de De Sica, esse sim um gênio, que criou inúmeras obras-primas, como Ladrões de bicicleta e Casamento à italiana (inteiramente chupado por Silvio de Abreu numa dessas novelas globais). Scorcese adora usar esse canastrão de marca maior, Robert de Niro, que não serve nem para engraxar os sapatos de Al Pacino e acha que fazer careta é arte de primeira grandeza. De Niro se presta a inúmeras performances que só intensificam sua falta de jeito e talento para esse ramo. Basta um milésimo de Sean Penn, um cordão de sapato de Tim Robbins para desmascarar essa fraude. Scorsese não faz cinema de denúncia (já que é sabujo do sistemão) como Arthur Penn, que em Caçada Humana ou Bonnie and Clyde consegue fazer um retrato da América fora do círculo de giz do autismo ideológico dessa nação. É por isso que encontraram em Scorcese o antídoto perfeito para o impacto causado por Penn, um cineasta como poucos. Além disso, Scorsese está longe de contribuir para o cinema como fez Sam Peckinpah, que colocou sangue na tela (o que era proibido pela censura estética conservadora) e filmou pela primeira vez a morte em câmara lenta (o que agora é usado até o infinito) sem se dobrar aos maneirismos “de autor”, apenas criando novas soluções visuais para traçar o perfil da América violenta. Cineastas originais precisam ser corajosos, o que não é o caso de Scorsese.
ENGULHOS - Nem tampouco Brian de Palma, essa contrafação do suspense, que, em princípio, odeia mulher. Está passando na HBO Femme Fatale, uma palhaçada com o execrável Antonio Banderas (o pior ator do mundo) e uma fauna de preconceitos (o negrão facínora, a loura vagabunda e cruel, a morena coitadinha, as lésbicas exibicionistas). Tudo provoca engulhos. O roteiro é ridículo, a apelação é extrema. O pior é que de Palma (e isso o aproxima de Scorsese) começa o filme transcrevendo um clássico do cinema noir, com Fred McMurray, como se essa citação o encaminhasse para a glória da autoria, como se fizesse parte do seleto grupo de criadores. Sua versão anódina de Os Intocáveis tinha essa mesma ilusão. O resultado foi um filme cheio de falsidades (como a tentativa de reproduzir a célebre cena de Eisenstein em Outubro, a do carrinho de bebê que desce a escada), além de um ridículo, como sempre, Kevin Kostner, o pseudo galã exilado de qualquer carisma. A cena do assassinato de Angie Dickinson em Vestida para matar é uma sucessão de barbaridades, a declarar o ódio que o autor devota ao sexo que ele deveria admirar. Acham essa cena o máximo, mas é apenas uma maneira de marcar o cinema com momentos de alta voltagem comercial, no pior sentido. Tudo não passa de comércio. Não há, nesses filmes, sinceridade que poderia até gerar muito dinheiro. Há apelo, como se o espectador fosse um sádico igual aos cineastas que produzem esse tipo de porcaria. E vocês notam a cara séria que eles fazem quando dão entrevistas sobre sua "arte"? Como se todos fossem obrigados a acreditar nas mentiras que contam.
RAÍZES - O tal de Tarantino, que nos explode a paciência com suas intermináveis arengas recheadas de violência gratuita, é ainda pior. Ter sido convidado para ser jurado em Cannes é puro deboche. Ele faz parte de uma camada de nulidades onde despontam coisas como o "diretor" Mel Gibson, o rei da patriotada barata. O novo filme de Gibson sobre Cristo deve ser uma besteira só. Sabe-se que ele, claro, apela para a violência estúpida que caracteriza toda a sua obra de ator e diretor. Gente desse quilate merece repúdio. Eles infestam o mundo do cinema e exercem péssima influência. Quando sabemos que David Lean se fez num caldo de cultura onde tinha Alexander Korda e Noel Coward, e que Glauber Rocha bebeu em Visconti de Terra Trema para fazer seu Barravento, e que Walter Salles seguiu os passos de Gloria, de John Cassavetes (autor de verdade) para compor sua obra-prima, Central do Brasil, notamos que o gênio nasce, mas precisa de ambiente para evoluir e se expressar. Num espaço tomado por inutilidades, fica difícil despontar os autores que mereçam ser vistos e respeitados.
RETORNO - Meu artigo sobre David Lean (escrito no bom e velho português) foi homenageado com um link no site em língua inglesa The Golden Years, que é uma seleção de textos sobre o que de melhor se fez em cinema. Está no endereço http://www.thegoldenyears.org/lean.html
É sempre bom saber que a análise livre sobre a arte das artes obtém repercussão. Este é um trabalho feito no calor da hora, sem nenhum vínculo com nada nem com ninguém, a não ser com o desafio de sintonizar, por meio da palavra, com a criação cinematográfica.
22 de fevereiro de 2004
A VEZ DO TRABALHISMO
Agora que todos se convenceram do que se trata o atual governo, é hora de resgatar o mais moderno conceito político do Brasil, aquele que garantiu para os trabalhadores seus direitos mínimos, sucateados pela atual fase do regime autoritário, que encontrou naquela pseudo esquerda dos 60 – tipo José Dirceu – a salvação da própria lavoura. É hora de apagar os preconceitos e apostar firme no trabalhismo, que é uma criação brasileira, apesar das acusações dos oportunistas que conseguiram “provar” o contrário.
O VOTO CERTO – Não existiam trabalhadores no Brasil antes de 1930 (quando uma dissidência política, com amplo apoio popular, fez a revolução), existiam escravos. Toda a família era jogada nos porões das fábricas mais de 10 horas por dia, sem direito a nada. Essa situação de miséria e exploração voltou, graças ao sucateamento das conquistas trabalhistas. O regime de 64, que ainda está em vigor, usou a direita de punhos de renda – o PT – para consolidar-se, ou seja, aniquilar as pretensões ao poder dos trabalhistas. Conseguiu dividir o movimento, entregando a sigla histórica, o PTB, para os traidores, e deixando à deriva a mais importante liderança trabalhista, Leonel Brizola – que na sua época de governador, colocou os mais importantes bicheiros na cadeia. Uma das acusações do PT era o abraço entre o getulismo e o jogo do bicho, mas sabemos agora quem está envolvido com quem. Quando José Vicente, o filho do governador, foi cooptado pelo PT para cuidar desse buraco negro que é a loteria (no seu caso, o Rio Grande do Sul), imediatamente Brizola, o pai, fez a denúncia. Brizola foi também o primeiro a saltar fora da coligação que levou o PT ao poder, quando viu para onde se dirigia o traidor Lula. Quando o trabalhismo perdeu as eleições no Rio Grande do Sul em 1962, graças à campanha das “mãos limpas” do candidato Francisco Ferrari (o que redundou no golpe de 64, apoiado pela direita gaúcha no poder estadual, junto com a direita de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro), minha mãe costumava dizer: “Não estão se dando conta que isso é jogada para derrotar o trabalhismo. Votem no PTB”, insistia, em vão. Dona Rosinha era funcionária pública do Centro de Saúde e tinha contato direto com a parte mais pobre do povo. Por muitos anos, foi uma espécie de para-médica, ou seja, aplicava injeções e vacinas e dava noções de higiene na periferia. Era a chamada Visitadora Pública, uma invenção do governo getulista. Depois de sucessivos golpes, o governo se retirou desse serviço, abrindo um claro para ser aproveitado pelas ONGs, que sugam dinheiro público subsidiado para suas ações paliativas. Saúde e educação são obras de governos. Governos trabalhistas, em sua maioria.
PRECONCEITOS – Por favor, não me venham com a história de que Brizola é isto e aquilo. O golpe de 64 foi feito pelos governadores de direita – Meneghetti, Ademar, Lacerda (toc, toc, toc) e Magalhães Pinto. Eles queriam a presidência (o tiro saiu pela culatra, pois foram espirrados pelos militares) e só havia um candidato para ganhar nas eleições presidenciais marcadas para 965: exatamente Brizola, que estatizou multinacionais da área telefônica (as mesmas que hoje cobram para a gente receber ligações do celular), enfrentou uma ameaça de golpe de estado (em 1961, depois que aquele idiota do Jânio renunciou) e por isso foi o deputado federal mais votado do país em 1962. Eles tinham medo do voto crescente do trabalhismo, por isso deram o golpe, pois sabiam que iam perder. Pois os comunistas acham que o golpe foi contra eles. Não foi. O partidão jamais teve importância no Brasil. Quem dava as cartas era o trabalhismo getulista. Também não me venham com a história do caudilhismo getulista. Getúlio foi presidente eleito duas vezes, uma em 1933, pela Assembléia Constituinte, e outra em 1950, na mais completa lavada de votos do país, quando o povo sabia em quem votar. O Estado Novo foi um golpe militar nacionalista, desencadeado pelo erro dos comunistas e integralistas, que tentaram tomar o poder à força. Em 1945, quando Getulio foi derrubado por outro golpe militar, o Brasil tinha zerado a dívida externa. Hoje estamos vendidos aos gringos até o pescoço.
É simples. É cristalino. É óbvio. Apostem no trabalhismo.
Como vêem, estou em campanha.
O VOTO CERTO – Não existiam trabalhadores no Brasil antes de 1930 (quando uma dissidência política, com amplo apoio popular, fez a revolução), existiam escravos. Toda a família era jogada nos porões das fábricas mais de 10 horas por dia, sem direito a nada. Essa situação de miséria e exploração voltou, graças ao sucateamento das conquistas trabalhistas. O regime de 64, que ainda está em vigor, usou a direita de punhos de renda – o PT – para consolidar-se, ou seja, aniquilar as pretensões ao poder dos trabalhistas. Conseguiu dividir o movimento, entregando a sigla histórica, o PTB, para os traidores, e deixando à deriva a mais importante liderança trabalhista, Leonel Brizola – que na sua época de governador, colocou os mais importantes bicheiros na cadeia. Uma das acusações do PT era o abraço entre o getulismo e o jogo do bicho, mas sabemos agora quem está envolvido com quem. Quando José Vicente, o filho do governador, foi cooptado pelo PT para cuidar desse buraco negro que é a loteria (no seu caso, o Rio Grande do Sul), imediatamente Brizola, o pai, fez a denúncia. Brizola foi também o primeiro a saltar fora da coligação que levou o PT ao poder, quando viu para onde se dirigia o traidor Lula. Quando o trabalhismo perdeu as eleições no Rio Grande do Sul em 1962, graças à campanha das “mãos limpas” do candidato Francisco Ferrari (o que redundou no golpe de 64, apoiado pela direita gaúcha no poder estadual, junto com a direita de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro), minha mãe costumava dizer: “Não estão se dando conta que isso é jogada para derrotar o trabalhismo. Votem no PTB”, insistia, em vão. Dona Rosinha era funcionária pública do Centro de Saúde e tinha contato direto com a parte mais pobre do povo. Por muitos anos, foi uma espécie de para-médica, ou seja, aplicava injeções e vacinas e dava noções de higiene na periferia. Era a chamada Visitadora Pública, uma invenção do governo getulista. Depois de sucessivos golpes, o governo se retirou desse serviço, abrindo um claro para ser aproveitado pelas ONGs, que sugam dinheiro público subsidiado para suas ações paliativas. Saúde e educação são obras de governos. Governos trabalhistas, em sua maioria.
PRECONCEITOS – Por favor, não me venham com a história de que Brizola é isto e aquilo. O golpe de 64 foi feito pelos governadores de direita – Meneghetti, Ademar, Lacerda (toc, toc, toc) e Magalhães Pinto. Eles queriam a presidência (o tiro saiu pela culatra, pois foram espirrados pelos militares) e só havia um candidato para ganhar nas eleições presidenciais marcadas para 965: exatamente Brizola, que estatizou multinacionais da área telefônica (as mesmas que hoje cobram para a gente receber ligações do celular), enfrentou uma ameaça de golpe de estado (em 1961, depois que aquele idiota do Jânio renunciou) e por isso foi o deputado federal mais votado do país em 1962. Eles tinham medo do voto crescente do trabalhismo, por isso deram o golpe, pois sabiam que iam perder. Pois os comunistas acham que o golpe foi contra eles. Não foi. O partidão jamais teve importância no Brasil. Quem dava as cartas era o trabalhismo getulista. Também não me venham com a história do caudilhismo getulista. Getúlio foi presidente eleito duas vezes, uma em 1933, pela Assembléia Constituinte, e outra em 1950, na mais completa lavada de votos do país, quando o povo sabia em quem votar. O Estado Novo foi um golpe militar nacionalista, desencadeado pelo erro dos comunistas e integralistas, que tentaram tomar o poder à força. Em 1945, quando Getulio foi derrubado por outro golpe militar, o Brasil tinha zerado a dívida externa. Hoje estamos vendidos aos gringos até o pescoço.
É simples. É cristalino. É óbvio. Apostem no trabalhismo.
Como vêem, estou em campanha.
20 de fevereiro de 2004
LEMBRANÇAS DE ANGOLA
A filha de uma das melhores amigas da minha mãe escreve um artigo revelador sobre sua experiência na África. Publico a seguir a maior parte do texto. Ela é Maria da Graça Lisboa Pereira da Silva, Pedagoga/Professora de Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria, a cidade-coração do Rio Grande do Sul. Sua especialização é em Natação pela University of Alberta, Edmonton, Canadá. Maria da Graça é irmã do meu amigo Fernando, o escritor que resgata Uruguaiana pela memória e a reportagem histórica.
PRIMEIRO IMPACTO - "Nos idos de junho de 1981 fui contratada como Pedagoga e Professora de Educação Física pela “Projed/Projetos educacionais”, para trabalhar na implantação de uma creche em Luanda, capital de Angola, na África, para atender aos filhos dos funcionários da Sonangol—Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola. A Projed é sediada em Porto Alegre e, na ocasião, era administrada pelo Coronel Mauro da Costa Rodriguez, que havia sido Secretário de Educação do Rio Grande do Sul e Secretário Geral do Ministério de Educação, na gestão do ministro Jarbas Passarinho. O projeto foi realizado pela Interbrás/Petrobás, exportadora de técnicos, por meio de empresas capacitadas e com credibilidade, contratadas para serviços específicos.
O primeiro impacto, ao chegar a Angola, foi o choque de culturas, principalmente por causa do regime comunista vigente no País, que me reservava tantas surpresas e problemas. Em compensação, tive também muitas emoções que me deixaram lembranças inesquecíveis de um povo carismático, sofrido e muito carente. Na ocasião, sofria Angola de instabilidade política, com guerrilhas entre as facções do MPLA, da UNITA e da FNPLA. A implantação da creche modelo, que comportava 300 crianças, de recém-nascidos até seis anos, foi iniciada com entrevista a 400 pessoas interessadas em preencher as 110 vagas disponíveis nos diferentes setores. Foi ministrado às pessoas selecionadas um treinamento de oito meses, nas respectivas especializações.
RACIONAMENTO - Éramos oito brasileiros. Nosso trabalho foi inicialmente coordenado por uma agente do partido comunista, de nome Clorinda, que, além de controlar o grupo, tentava exercer sobre nós um poder político e pessoal, como sempre. Vivendo em uma situação controlada, aconteciam fatos inusitados, como as compras para alimentação, que eram feitas por meio de um “cartão de cooperante”, que os estrangeiros recebiam ao chegar a Angola, para fazer compras no “supermercado dos cooperantes”. Esse cartão servia para comprar somente duas unidades por semana, de cada produto e, às vezes, não ultrapassava vinte diferentes produtos. Por causa do racionamento permanente, havia grande falta de produtos.
Este racionamento levava a trocas de produtos, chamada “candonga”. Os angolanos trocavam alimentos conosco. Também os cubanos tentavam fazer candonga com os brasileiros. Queriam tudo, até roupas. Hoje vemos isso sem surpresa, considerando o mercado negro existente em Cuba. Já os soviéticos eram mais arredios e não se misturavam ao “proletariado”, que eles consideravam seres inferiores. Nas manhãs de sábado utilizávamos nossas folgas para fazer compras no mercado central “Kinachiche”, que era bastante pobre mas onde encontrávamos frutas típicas da estação, alguns legumes e verduras, peixe fresco e trabalhos de artesanato. Recebíamos por malote, da Projed, suprimentos não existentes em Luanda, que, às vezes, eram trocados por alimentos frescos vendidos no mercado.
KWANZA - A moeda nacional era o kwanza. No mercado oficial trinta kwanzas valiam um dólar, entretanto, no mercado negro, que espelha o valor real da moeda local, eram necessários 400 kwanzas para adquirir um dólar. Em Cuba acontece fenômeno semelhante, em relação ao peso cubano. Posteriormente, para que Angola melhorasse seu relacionamento com os países da África Central, idealizaram os “I Jogos da África Central”. Eu, como professora de Educação Física, e a colega Marlise Jacinto, como Enfermeira, fomos requisitadas pelo Partido para nos incorporarmos ao grupo de trabalho. Fomos afastadas da creche por três semanas. Tudo fizemos para que os jogos fossem bem sucedidos.
Todas as atividades eram totalmente controladas mas tivemos o privilégio de receber um cartão permitindo circular nas horas proibidas pelo “toque de recolher”. Conseguimos, com nossa influência, colocar o grupo da PROJED em lugar destacado para assistir as festividades de abertura dos jogos no Estádio Municipal.
As alunas que treinamos para tomar parte na cerimônia tinham direito a melhor alimentação. Tivemos, assim, freqüência absoluta. Deixei uma parte da minha saúde em Angola, ao adquirir malária. Fui cuidada por minhas incansáveis alunas, que, durante uma semana, se revezaram noite e dia, ajudando, com métodos primitivos, amenizar a febre alta que me assolava. Tratei-me também com quinino, ministrada por médicos, além do carinho das colegas Clélia Dias e Maria Alice Baptista. Graças a esta equipe é que posso estar escrevendo esta história.
CORAÇÃO - Pelos noticiários temos conhecimento que Angola está em fase de reestruturação. Tenho pensado nas crianças daquela creche que lá deixamos há vinte e um anos. Elas são a nova geração daquele povo tão sofrido, tão perturbado por interesses internacionais, tão rico em recursos minerais. Estima-se que seu subsolo albergue 35 dos 45 minerais mais importantes do comércio mundial, dentre os quais destacamos: diamante, fosfato, ferro, cobre, magnésio, ouro e rochas ornamentais, além de petróleo, substâncias betuminosas e gás natural. Se toda esta riqueza fosse bem administrada, Angola estaria entre os países de melhor qualidade de vida do mundo.
Angola foi uma experiência maravilhosa, que merece um livro. As lembranças são incomensuráveis. Se tivesse a oportunidade, faria tudo de novo e inteiramente de graça. Realmente deixei meu coração na África. Lá nos realizamos como profissionais e como seres humanos. Dedicamo-nos àquele povo com todo nosso coração e temos a certeza de que não fomos esquecidos e que a recíproca foi verdadeira."
RETORNO - Meu poema Jimi, sobre Hendrix, o gênio que espichou o universo para fora de todas as fronteiras, serve de abertura para magnífico texto sobre aquele que nos tornou melhores no blog http://www.hugabuga.hpg.ig.com.br/jimihendrix.html
PRIMEIRO IMPACTO - "Nos idos de junho de 1981 fui contratada como Pedagoga e Professora de Educação Física pela “Projed/Projetos educacionais”, para trabalhar na implantação de uma creche em Luanda, capital de Angola, na África, para atender aos filhos dos funcionários da Sonangol—Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola. A Projed é sediada em Porto Alegre e, na ocasião, era administrada pelo Coronel Mauro da Costa Rodriguez, que havia sido Secretário de Educação do Rio Grande do Sul e Secretário Geral do Ministério de Educação, na gestão do ministro Jarbas Passarinho. O projeto foi realizado pela Interbrás/Petrobás, exportadora de técnicos, por meio de empresas capacitadas e com credibilidade, contratadas para serviços específicos.
O primeiro impacto, ao chegar a Angola, foi o choque de culturas, principalmente por causa do regime comunista vigente no País, que me reservava tantas surpresas e problemas. Em compensação, tive também muitas emoções que me deixaram lembranças inesquecíveis de um povo carismático, sofrido e muito carente. Na ocasião, sofria Angola de instabilidade política, com guerrilhas entre as facções do MPLA, da UNITA e da FNPLA. A implantação da creche modelo, que comportava 300 crianças, de recém-nascidos até seis anos, foi iniciada com entrevista a 400 pessoas interessadas em preencher as 110 vagas disponíveis nos diferentes setores. Foi ministrado às pessoas selecionadas um treinamento de oito meses, nas respectivas especializações.
RACIONAMENTO - Éramos oito brasileiros. Nosso trabalho foi inicialmente coordenado por uma agente do partido comunista, de nome Clorinda, que, além de controlar o grupo, tentava exercer sobre nós um poder político e pessoal, como sempre. Vivendo em uma situação controlada, aconteciam fatos inusitados, como as compras para alimentação, que eram feitas por meio de um “cartão de cooperante”, que os estrangeiros recebiam ao chegar a Angola, para fazer compras no “supermercado dos cooperantes”. Esse cartão servia para comprar somente duas unidades por semana, de cada produto e, às vezes, não ultrapassava vinte diferentes produtos. Por causa do racionamento permanente, havia grande falta de produtos.
Este racionamento levava a trocas de produtos, chamada “candonga”. Os angolanos trocavam alimentos conosco. Também os cubanos tentavam fazer candonga com os brasileiros. Queriam tudo, até roupas. Hoje vemos isso sem surpresa, considerando o mercado negro existente em Cuba. Já os soviéticos eram mais arredios e não se misturavam ao “proletariado”, que eles consideravam seres inferiores. Nas manhãs de sábado utilizávamos nossas folgas para fazer compras no mercado central “Kinachiche”, que era bastante pobre mas onde encontrávamos frutas típicas da estação, alguns legumes e verduras, peixe fresco e trabalhos de artesanato. Recebíamos por malote, da Projed, suprimentos não existentes em Luanda, que, às vezes, eram trocados por alimentos frescos vendidos no mercado.
KWANZA - A moeda nacional era o kwanza. No mercado oficial trinta kwanzas valiam um dólar, entretanto, no mercado negro, que espelha o valor real da moeda local, eram necessários 400 kwanzas para adquirir um dólar. Em Cuba acontece fenômeno semelhante, em relação ao peso cubano. Posteriormente, para que Angola melhorasse seu relacionamento com os países da África Central, idealizaram os “I Jogos da África Central”. Eu, como professora de Educação Física, e a colega Marlise Jacinto, como Enfermeira, fomos requisitadas pelo Partido para nos incorporarmos ao grupo de trabalho. Fomos afastadas da creche por três semanas. Tudo fizemos para que os jogos fossem bem sucedidos.
Todas as atividades eram totalmente controladas mas tivemos o privilégio de receber um cartão permitindo circular nas horas proibidas pelo “toque de recolher”. Conseguimos, com nossa influência, colocar o grupo da PROJED em lugar destacado para assistir as festividades de abertura dos jogos no Estádio Municipal.
As alunas que treinamos para tomar parte na cerimônia tinham direito a melhor alimentação. Tivemos, assim, freqüência absoluta. Deixei uma parte da minha saúde em Angola, ao adquirir malária. Fui cuidada por minhas incansáveis alunas, que, durante uma semana, se revezaram noite e dia, ajudando, com métodos primitivos, amenizar a febre alta que me assolava. Tratei-me também com quinino, ministrada por médicos, além do carinho das colegas Clélia Dias e Maria Alice Baptista. Graças a esta equipe é que posso estar escrevendo esta história.
CORAÇÃO - Pelos noticiários temos conhecimento que Angola está em fase de reestruturação. Tenho pensado nas crianças daquela creche que lá deixamos há vinte e um anos. Elas são a nova geração daquele povo tão sofrido, tão perturbado por interesses internacionais, tão rico em recursos minerais. Estima-se que seu subsolo albergue 35 dos 45 minerais mais importantes do comércio mundial, dentre os quais destacamos: diamante, fosfato, ferro, cobre, magnésio, ouro e rochas ornamentais, além de petróleo, substâncias betuminosas e gás natural. Se toda esta riqueza fosse bem administrada, Angola estaria entre os países de melhor qualidade de vida do mundo.
Angola foi uma experiência maravilhosa, que merece um livro. As lembranças são incomensuráveis. Se tivesse a oportunidade, faria tudo de novo e inteiramente de graça. Realmente deixei meu coração na África. Lá nos realizamos como profissionais e como seres humanos. Dedicamo-nos àquele povo com todo nosso coração e temos a certeza de que não fomos esquecidos e que a recíproca foi verdadeira."
RETORNO - Meu poema Jimi, sobre Hendrix, o gênio que espichou o universo para fora de todas as fronteiras, serve de abertura para magnífico texto sobre aquele que nos tornou melhores no blog http://www.hugabuga.hpg.ig.com.br/jimihendrix.html
15 de fevereiro de 2004
O SUFOCO DO OLHAR
Sofia Coppola, em Encontros e desencontros (Lost in translation), mostra como o loteamento do olhar (em Tóquio, onde ela filmou, todos os espaços da percepção estão tomados) pode significar o momento de impasse na vida dos personagens envolvidos. Para ser fiel ao que vi no filme, prefiro trair o sentido pretensamente original de “translation”, que seria tradução, para o que acho mais apropriado: baldeação. Explico melhor a seguir.
VIDA PROVISÓRIA – A onda de equívocos que a crítica provocou quando a filha de Coppola estreou no cinema, como atriz, somou-se às asneiras ditas em relação à seminal obra-prima Poderoso Chefão III , o melhor da série dirigida pelo pai, Francis Ford, que pagou caro pela escolha que fez ao colocar sua garota nesse filme num dos papéis mais importantes. Sofia interpretou tão bem a filha do mafioso, que a confundiram como uma amadora, que estava ali representando a si mesma, como se naquele trabalho – à altura das grandes performances da estudada escola “naturalista” americana, filha dos ensinamentos do Actor’s Studio - já não estivesse presente a fagulha de um grande talento. Em Lost in translation, ela mostra mais uma vez que não é uma artista qualquer.
O cinqüentão (Bill Murray, excepcional, como sempre) que desce do trem do seu casamento – pelo menos temporariamente, enquanto está filmando um comercial de uísque para os japoneses – está perdido nessa estação intermediária, esse lugar que confluências, que serve para despejar os passageiros de um comboio e recolher os passageiros de outro. Acontece o mesmo com a jovem (Scarlett Johansson), que duvida do seu casamento e é despejado dele também provisoriamente, já que o marido fotógrafo tem outras preocupações.
Este pode ser encarado como um filme para fotógrafos: a arte da imagem, nele, está totalmente identificada com o sufoco do olhar, a comercialização do que deve ser visto por todos. É por isso que o diretor do comercial é um bruto incompreensível, o fotógrafo que tenta tirar emoções do rosto do ator é um ignorante de cinema e o maridinho cool da principal personagem feminina é um imbecil corporativo, que cai nas artimanhas de uma starlet vazia. Eles reforçam o tema do filme, que é mostrar como o mercantilismo multinacional ocupa todos os espaços da visão para dela tirar o máximo proveito, jogando fora o que há de mais valioso, as relações verdadeiramente humanas.
Assim, o homem maduro e a jovem bacharel em filosofia, desencontrados de si, despejados de seus vagões, procuram fazer a baldeação na estação-Tóquio, encontrar um trem que os resgate.
VIVA A DIFERENÇA – A maldição do olhar viciado nas imagens comercializadas é reproduzir eternamente o imaginário do Mesmo. O truque é carregar nas cores, nos movimentos de luz, nas trucagens, para dar a falsa impressão de diversidade. Não existe diferença entre o Monte Fuji visto ao longe de maneira bem comportada, a partir de um campo de golf (o monte é apenas uma paisagem fake, mural que imita a natureza) e a animação de um dinossauro no centro de Tóquio. É tudo o Mesmo, que se reflete nas palavras gastas, nos cumprimentos forçados, na gentileza caríssima dos hotéis de luxo, no strip-tease profissional e bizarro.
Os dois personagens – o cinqüentão e a jovem – fogem do que costumam conectar, pois estão à procura da diferença, que dará sentido às suas vidas (mesmo que não saibam disso conscientemente). O ator escapa dos fãs, da troupe que o escolta, e faz gestos cínicos para quem tenta manipulá-lo. No outro lado do bar, ela foge das conversas sobre anorexia da mesa onde está, exausta do esforço que os viciados na mesmice tentam impor por meio de falsos impactos nos gestos e idéias. Essa fuga mútua empurra os dois para vários encontros e daí para uma relação que se transmuta numa revelação.
Quando finalmente eles assumem esse amor frutificado na diferença, o olhar deixa de ser refém da cidade e Tóquio aparece como nunca, dando espaço para um travelling inesquecível, onde a imagem divide-se entre o perfil dos edifícios e o céu, território quer não pode ainda ser loteado.
PAISAGEM - A libertação pelo amor vindo da diferença é o fim do sufoco do olhar. É pegar um trem que não estava programado, é inventar uma linha que, em vez de ir para a capital, pegue uma estrada imaginária que nos leve para o alto da serra, por exemplo. De lá, podemos descortinar uma nova paisagem, soma do que herdamos com o que adquirimos neste filme magnífico, meu favorito para todos os Oscar.
RETORNO - 1. Vi ontem a exposição sobre os 450 anos de São Paulo no Centro Cultural Fiesp. Estão faltando lá os fotógrafos atuais da cidade: Marcelo Min, Helcio Toth, Regina Agrella, Maurício Paiva, entre tantos outros. Senti falta também de um ensaio sobre o Copan do Adelino Nazario. Tudo isso daria mais vida à exposição, que está, apesar dessa falha, maravilhosa.
2. Um poema que fiz recentemente, ilustrado por foto de Anderson Petroceli. Veja em http://www.portaluruguaiana.com/cantinhodopoeta/imagem.html
14 de fevereiro de 2004
O POEMA DO JEITO QUE FOI FEITO
Escrevi esse poema e publiquei apenas duas estrofes dele no meu livro No Mar, Veremos (Ed. Globo, 2001). Hoje, relendo, acho que merece todo o espaço disponível. Por isso reproduzo abaixo, com tudo.
CASTRO ALVES
Nei Duclós
I
Palavras, balas
perdidas no cérebro:
perigo de morte certa
O poema fura os olhos
o que mata fica na memória
O poeta volta
como a primavera
II
Voz de azul
pés de barro
rega o silêncio com ferro
O sofrimento é maior que o mistério
nenhuma canção o suporta
Nenhum choro lhe cerca
de consolo ou vitória
O sofrimento não é solitário
e põe ovos
O mar carregou ventres inchados
de ódio
O poeta chora por nós
de garganta aberta
III
A morte não leva o poeta
como a prece
não o redime do inferno
A vida não basta ao poeta
nem a velhice lhe seca
Só a juventude pode matá-lo
com armas secretas
Quando o coração desce
a luz do homem se transfere
Um dia a vida voou
para outras terras
mudou de estação
Como a primavera
o poeta volta
IV
A Bahia fez um filho
leve como a espuma
como areia presa à pele
A Bahia fez um filho em brasa
hoje tem saudades de estátua
V
Estou calado
a liberdade é uma pérola
não sei mergulhar
nem tenho barco
Não posso falar como falavas
Bem-vindo seja, camarada
bem-vindo à minha alma
fui sonhado por ti
e não sou nada
O povo canta em voz baixa
te procuram em minha casa
Foste preso mais uma vez
ontem à tarde
Mas teus versos não batem
em retirada
RETORNO - Neste verão de poucas mensagens, agradeço as artes de Ricky Bols, artista maior, as mensagens de Paulo Nogueira, agência informal de notícias, e o link para este blog do talentoso Tony Monti, revelação da literatura brasileira.
13 de fevereiro de 2004
O PESADELO DA LINGUAGEM
O pior é que não acordamos dele. “Obrigada eu” disse hoje de manhã a estudante usando o celular na parada do ônibus. Não se trata de exigir o “linguajar correto”, mas o menos horrível. “Brigadão aí”, diz-se a toda hora e se alguém nota, a expressão é repetida até cansar, porque então fica engraçado. Opor-se é “chorar”. Por isso escorregamos para o horror da palavra frouxa, do “tô nem aí” do individualismo crônico. Tá tudo legal.
MÃOS AO ALTO - Levantar as mãos significa entregar-se ao que a publicidade e o pseudojornalismo impõem na mídia. Vemos isso não só nos filmecos sem moderação sobre cerveja, mas em pleno campo de futebol. Depois de chargear o adversário, o animal de chuteiras levanta as mãos como a justificar sua inocência. Nos shows, a massa está entregue ao absurdo de músicos que não sabem o mínimo de música, são apenas marionetes segurando microfones e repetindo acordes. No pseudonoticiário o desplante é tamanho que hoje ouvi no jornal das dez do canal 20 o apresentador enxergar na zona leste de sampa castigada pelo granizo um certo “clima novaiorquino”. Uma popular queria saber das autoridades os motivos do gelo em pleno verão, o que recebeu imediato deboche de outro apresentador, no noticiário de sangue antes do jornal da Band. Exclusão é a palavra de ordem. Mataram um dentista porque era negro. Até quando? Até sempre. Não muda nunca. Depois o comandante lamenta. Não tem que lamentar, tem que agir antes que aconteça. Nos chamados esportes radicais, a mesma mentalidade. Para mim, esporte radical é o desprezo pela paisagem. Engraçado que, enquanto carros envenenados atravessam regiões pobres sem infra-estrutura em busca de aventura, fala-se em proteção ao meio ambiente. Ninguém se opõe. Estão todos presos no pesadelo da linguagem. É uma armadilha que não falha. Repete-se, então, obsessivamente, a muleta “com certeza”. Duvidar pega mal. Reclamou é porque é “chorão”.
LIBERTAÇÃO - Leio Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, obra-prima da literatura espanhola contemporânea transformada em magistral texto na língua pátria por Wagner Carelli. É a reconstituição de um assombroso episódio da guerra civil, quando um soldado poupa seu inimigo da morte certa com um dar de ombros. E para espantar as versões oficiais sobre a época do regime autoritário civil-militar de 64 (regime que ainda nos oprime, consolidado pela constituição de 1988 e suas emendas) , este ano haverá uma enxurrada de literatura sobre os anos de chumbo. Preparem-se. O Ano do Livro está mal começando. Metralhadora giratória contra o pesadelo da linguagem, que é fruto da má leitura ou da falta de. Um escritor te liberta quando faz o inventário da guerra, de qualquer guerra. Quando, à moda de High Noon, o faroeste inesquecível de Fred Zinnemann, Tabajara Ruas solta os cavalos na Uruguaiana dos anos 50 em seu Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez; quando Hilda Hilst, depois da sua morte, parte com sua obra para ser traduzida no Exterior, quando escritor falangista Sanchez Masa escapa do fuzilamento na obra de Cercas; quando sinto falta de Conrad, e Henry James, e Poe, e Lorca porque faz tempo que não os releio, algo acontece em nosso abandono das linguagens. É quando despertamos subitamente do pesadelo, e abrimos a janela direto para lua cheia.
ADVERTÊNCIA - No fundo, não é o livro que eu canto, mas essa revelação que nos manda para fora da rotina e nos arrebata porque somos criaturas com data de validade e a guerra que agora está sendo travada será transformada em palavras. Como disse uma vez Eduardo San Martin, o poeta e escritor que sumiu em Nova York e jamais manda notícias: “Cuidado, a vida é um romance, alguém está escrevendo.”
MÃOS AO ALTO - Levantar as mãos significa entregar-se ao que a publicidade e o pseudojornalismo impõem na mídia. Vemos isso não só nos filmecos sem moderação sobre cerveja, mas em pleno campo de futebol. Depois de chargear o adversário, o animal de chuteiras levanta as mãos como a justificar sua inocência. Nos shows, a massa está entregue ao absurdo de músicos que não sabem o mínimo de música, são apenas marionetes segurando microfones e repetindo acordes. No pseudonoticiário o desplante é tamanho que hoje ouvi no jornal das dez do canal 20 o apresentador enxergar na zona leste de sampa castigada pelo granizo um certo “clima novaiorquino”. Uma popular queria saber das autoridades os motivos do gelo em pleno verão, o que recebeu imediato deboche de outro apresentador, no noticiário de sangue antes do jornal da Band. Exclusão é a palavra de ordem. Mataram um dentista porque era negro. Até quando? Até sempre. Não muda nunca. Depois o comandante lamenta. Não tem que lamentar, tem que agir antes que aconteça. Nos chamados esportes radicais, a mesma mentalidade. Para mim, esporte radical é o desprezo pela paisagem. Engraçado que, enquanto carros envenenados atravessam regiões pobres sem infra-estrutura em busca de aventura, fala-se em proteção ao meio ambiente. Ninguém se opõe. Estão todos presos no pesadelo da linguagem. É uma armadilha que não falha. Repete-se, então, obsessivamente, a muleta “com certeza”. Duvidar pega mal. Reclamou é porque é “chorão”.
LIBERTAÇÃO - Leio Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, obra-prima da literatura espanhola contemporânea transformada em magistral texto na língua pátria por Wagner Carelli. É a reconstituição de um assombroso episódio da guerra civil, quando um soldado poupa seu inimigo da morte certa com um dar de ombros. E para espantar as versões oficiais sobre a época do regime autoritário civil-militar de 64 (regime que ainda nos oprime, consolidado pela constituição de 1988 e suas emendas) , este ano haverá uma enxurrada de literatura sobre os anos de chumbo. Preparem-se. O Ano do Livro está mal começando. Metralhadora giratória contra o pesadelo da linguagem, que é fruto da má leitura ou da falta de. Um escritor te liberta quando faz o inventário da guerra, de qualquer guerra. Quando, à moda de High Noon, o faroeste inesquecível de Fred Zinnemann, Tabajara Ruas solta os cavalos na Uruguaiana dos anos 50 em seu Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez; quando Hilda Hilst, depois da sua morte, parte com sua obra para ser traduzida no Exterior, quando escritor falangista Sanchez Masa escapa do fuzilamento na obra de Cercas; quando sinto falta de Conrad, e Henry James, e Poe, e Lorca porque faz tempo que não os releio, algo acontece em nosso abandono das linguagens. É quando despertamos subitamente do pesadelo, e abrimos a janela direto para lua cheia.
ADVERTÊNCIA - No fundo, não é o livro que eu canto, mas essa revelação que nos manda para fora da rotina e nos arrebata porque somos criaturas com data de validade e a guerra que agora está sendo travada será transformada em palavras. Como disse uma vez Eduardo San Martin, o poeta e escritor que sumiu em Nova York e jamais manda notícias: “Cuidado, a vida é um romance, alguém está escrevendo.”
12 de fevereiro de 2004
QUAL O LIVRO DA SUA VIDA?
Podem ser vários, pode ser o mais relido, pode ser o perdido para sempre em alguma viagem, pode ser o traduzido pelo amigo, pode ser o que faltam as últimas páginas, pode ser o que sempre tivemos vontade de ler e perdemos todas as oportunidades. Pode ser aquele que você aplaude de pé no final, mesmo que esteja sozinho, desempregado, nos anos 60, encerrado numa república vazia e tenha fechado aquela página derradeira que diz sobre o mundo “que nunca acaba de se acabar” como aconteceu comigo diante de Cem anos de solidão, do maior escritor do mundo.
NONADA - O romance é o inventário de uma guerra, qualquer guerra. O único compromisso é com a literatura, que veste o que chamam verdade, ou memória, ou mesmo poesia. O que faz o romance é decidir o que existe de épico do fato reconstituído pela soma de linguagens atiradas no chão do tempo. Minha cena favorita de Lord Jim, de Joseph Conrad, traduzido de uma versão francesa pela música de Mário Quintana, é quando o anti-herói joga a tocha acesa no rio e, ao apagar-se, revela todas as estrelas. Ou a cena de O coração das trevas em que Marlowe cruza com seu barco o meio do nada chamado Tamisa e começa a narrar para quem o cerca, prendendo-os numa rede irresistível a que chamam história, mas que é pura magia. O romance pode ficar na sala da espera mas jamais humilha-se para uma entrevista. É o ato mais corajoso que o isolamento pode empreender, afora o fato de escapar de um seqüestro com as mãos amarradas – e isto já seria insumo para novo romance. O texto intrincado, como em Guimarães Rosa de Grande Sertão (e tão clássico em Sagarana) é a prova dos nove da leitura que se deixa abater depois de algumas investidas. Lembro que fiquei meses paralisado diante da palavra inicial Nonada, que Rosa usa para afugentar os preguiçosos.
O livro da sua vida é como o momento diante da morte: majestoso, irreversível, humano e precário; não há nada igual. Por um tempo, quando era foca na redação da Folha da Tarde da Caldas Junior em 1970, andava com os Quatro Quartetos do Eliot embaixo do braço. Nunca entendi o verso “abril é o mais cruel dos meses”, já que abril é um dos mais belos meses do ano, quando o Rio Grande do Sul dá uma trégua aos rigores do frio e do calor e aposta na amenidade da meia estação. Mas aquela edição antiga e brasileira de Eliot me encheu de boas fumaças para o exercício da escrita, naquele tempo em que enfrentei uma redação de feras e fui tratado com a generosidade que se presta aos viajantes sedentos e ainda jovens demais para pensar no pior.
SOBRA DE GUERRA - Conheço dúzias de pessoas sideradas por Os Thibault, de Roger Martin du Gard, que saiu em edição primorosa pela Editora Globo (graças, claro, à gestão Wagner Carelli) e que ainda deve estar dando sopa nas livrarias. Monteiro Lobato servia para inventarmos o verbo requeteler, pois era isso que fazíamos especialmente no inverno, quando o Sitio do Picapau Amarelo nos embalava a paz antes do sono e nos despertava para mais literatura. Tem livro inesquecível considerado científico que se lê com o prazer de um romance como é o caso de Raízes do Brasil ou Caminhos e Fronteiras, de Sergio Buarque de Holanda. Tem livro que assombra pela genialidade de sua síntese como As Brasinas, de J.A. Pio de Almeida. E livro que serve para marcar para sempre nossas vidas como Paris é uma festa, de Hemingway ou Seis contos da era do jazz, de Scott Fitzgerald. Tem livros impressionantes que li uma vez e jamais me recuperei como Metamorfose, de Kafka, O Conceito rosacruz do cosmo, de Max Heindel ou O Evangelho segundo o espiritismo, de Alan Kardec. Ou A magia do verbo, um pequeno opúsculo que mostrava a natureza divina de cada letra, representação de uma divindade que era evocada a cada enunciação do som que ela encerrava. Acredito na palavra mágica, no abracadabra. Não faz outra coisa o escritor do que ir atrás desse poder que abre portas e derruba muros. Tem livros que você não acredita não ser suficientemente conhecido como Sobra de Guerra, de José Onofre, o mais radical romance policial de todos os tempos.
O livro da sua vida é aquele que você cita cada página como se fosse sua e tem certeza que o escreveu em outras vidas, quando Deus foi bem mais misericordioso e distribuiu com mais igualdade suas graças. Pois o talento é um mistério que o universo guarda no cofre e de vez em quando abre para nos assustar. Ficar imune a essa provocação é perder o sentido da vida.
NONADA - O romance é o inventário de uma guerra, qualquer guerra. O único compromisso é com a literatura, que veste o que chamam verdade, ou memória, ou mesmo poesia. O que faz o romance é decidir o que existe de épico do fato reconstituído pela soma de linguagens atiradas no chão do tempo. Minha cena favorita de Lord Jim, de Joseph Conrad, traduzido de uma versão francesa pela música de Mário Quintana, é quando o anti-herói joga a tocha acesa no rio e, ao apagar-se, revela todas as estrelas. Ou a cena de O coração das trevas em que Marlowe cruza com seu barco o meio do nada chamado Tamisa e começa a narrar para quem o cerca, prendendo-os numa rede irresistível a que chamam história, mas que é pura magia. O romance pode ficar na sala da espera mas jamais humilha-se para uma entrevista. É o ato mais corajoso que o isolamento pode empreender, afora o fato de escapar de um seqüestro com as mãos amarradas – e isto já seria insumo para novo romance. O texto intrincado, como em Guimarães Rosa de Grande Sertão (e tão clássico em Sagarana) é a prova dos nove da leitura que se deixa abater depois de algumas investidas. Lembro que fiquei meses paralisado diante da palavra inicial Nonada, que Rosa usa para afugentar os preguiçosos.
O livro da sua vida é como o momento diante da morte: majestoso, irreversível, humano e precário; não há nada igual. Por um tempo, quando era foca na redação da Folha da Tarde da Caldas Junior em 1970, andava com os Quatro Quartetos do Eliot embaixo do braço. Nunca entendi o verso “abril é o mais cruel dos meses”, já que abril é um dos mais belos meses do ano, quando o Rio Grande do Sul dá uma trégua aos rigores do frio e do calor e aposta na amenidade da meia estação. Mas aquela edição antiga e brasileira de Eliot me encheu de boas fumaças para o exercício da escrita, naquele tempo em que enfrentei uma redação de feras e fui tratado com a generosidade que se presta aos viajantes sedentos e ainda jovens demais para pensar no pior.
SOBRA DE GUERRA - Conheço dúzias de pessoas sideradas por Os Thibault, de Roger Martin du Gard, que saiu em edição primorosa pela Editora Globo (graças, claro, à gestão Wagner Carelli) e que ainda deve estar dando sopa nas livrarias. Monteiro Lobato servia para inventarmos o verbo requeteler, pois era isso que fazíamos especialmente no inverno, quando o Sitio do Picapau Amarelo nos embalava a paz antes do sono e nos despertava para mais literatura. Tem livro inesquecível considerado científico que se lê com o prazer de um romance como é o caso de Raízes do Brasil ou Caminhos e Fronteiras, de Sergio Buarque de Holanda. Tem livro que assombra pela genialidade de sua síntese como As Brasinas, de J.A. Pio de Almeida. E livro que serve para marcar para sempre nossas vidas como Paris é uma festa, de Hemingway ou Seis contos da era do jazz, de Scott Fitzgerald. Tem livros impressionantes que li uma vez e jamais me recuperei como Metamorfose, de Kafka, O Conceito rosacruz do cosmo, de Max Heindel ou O Evangelho segundo o espiritismo, de Alan Kardec. Ou A magia do verbo, um pequeno opúsculo que mostrava a natureza divina de cada letra, representação de uma divindade que era evocada a cada enunciação do som que ela encerrava. Acredito na palavra mágica, no abracadabra. Não faz outra coisa o escritor do que ir atrás desse poder que abre portas e derruba muros. Tem livros que você não acredita não ser suficientemente conhecido como Sobra de Guerra, de José Onofre, o mais radical romance policial de todos os tempos.
O livro da sua vida é aquele que você cita cada página como se fosse sua e tem certeza que o escreveu em outras vidas, quando Deus foi bem mais misericordioso e distribuiu com mais igualdade suas graças. Pois o talento é um mistério que o universo guarda no cofre e de vez em quando abre para nos assustar. Ficar imune a essa provocação é perder o sentido da vida.
10 de fevereiro de 2004
O ETERNO ENCANTO DE LIBRES
Quando anunciavam a possibilidade próxima do fim do mundo, tinha gente na minha terra que imaginava uma solução tão simples quanto encantadora: escapar do Apocalipse era fácil, bastava fugir para Paso de Los Libres. A cidade em frente a Uruguaiana, do outro lado do rio, portal de entrada da Argentina, faz parte da nossa fronteira como alguém da família. Naquele imaginário antigo, Libres já era vista como o início de uma outra realidade, de uma viagem que a conterrânea e empresária Jussara Aymone descreve na bela mensagem a seguir.
ESTILO DE VIDA - “Eu sou apaixonada por Libres e quando a gente chega lá tem a sensação de viajar ao passado, não só pela hora a menos mas pelos prédios, ruas, estilo de vida. Tem ruas com aspecto tão de antigamente que se tem a sensação de estar dentro de um filme ou mesmo em outra época. Adoro o fato de ser vizinha da Argentina pois confio mais neles do que neste Brasil que desde o governo FHC em 1995 não nos permite ter esperanças de vencer ou mesmo crescer na vida. Eles são unidos, politizados e estão superando a crise, vejo isto na quantidade de argentinos que neste ano estão passando por aqui para irem para as praias do Brasil.
Outra coisa interessante de Libres pela cultura do povo é que sendo uma cidade com apenas 50.000 habitantes a gente encontra nas papelarias materiais de desenho assim como papéis importados, esfuminho, lápis, pastel...até em Porto Alegre estes materiais só se consegue em papelarias especiais. O mercado não tem mais aquele monte de bancas, mas a loja "Emilia" ainda existe com aquele cheirinho peculiar de mistura de queijos, azeitonas, bolachinha Criolitas, balas de leite, tudo a granel...
Nos supermercados sempre se vê novidades que ainda não chegaram no Brasil, eu adoro novidades. Ainda existe também o "Buraco", mas o Mercosul acabou com nosso livre trânsito então não se pode comprar víveres assim como frutas, queijos, carnes, batatas. O pessoal daqui compra no Buraco a cerveja, o vinho, o sabão e trazem escondido alguma fruta ou carne. Não existe mais o comércio formiga que ia lá comprar a batata, a cebola e outra coisas convenientes para vender em sua casa aos vizinhos que não tinham acesso a Libres. O Mercosul faz os trâmites pelos céus entre Buenos Aires e SP...e podemos comprar a deliciosa maçã argentina só no supermercado do Brasil. A gasolina continua mais barata lá.
SORVETE EM TAÇA - Libres continua do mesmo tamanho mas com vantagens, o horário é diferente e indo lá as 10 da noite a cidade está iluminada com muita gente sentada nos barzinhos e sorveterias, o comércio aberto e muito povo na rua dando a sensação de grande cidade. Em dias de semana a cidade aqui está morta neste horário pois a Globo rouba a cena...E outra coisa gostosa de Libres é o prazer de se sentar na sorveteria e poder comer aquele sorvete delicioso na taça banhado com chocolate sabendo que não será pesado; o fato de pesar o sorvete matou a sorveteria...aqui fazem fila para as máquinas com gosto de nada.
Quando o filme Titanic foi lançado aqui na nossa cidade não havia mais cinema, então fomos curiosos assistir o filme com todos aqueles efeitos especiais em Libres.O cinema de lá é como em toda cidade de interior que tem a praça principal, de um lado da rua a prefeitura, de outro a Catedral, de outro o Clube do Comércio e de outro o cinema. Era inverno, com o frio marcando zero graus, levamos a garrafa do bom vinho argentino Don Valentin...entramos na sala de projeção e algo estranho nos chamou atenção: os corredores do cinema estavam sendo aquecidos por estufas de gás, tal era o frio da noite e seriam 3 horas de filme...Sentamos e passou o baleiro uniformizado com aquela bandeja pendurada no pescoço oferecendo balas de leite, alfafores, torrones...A luz apagou...as cortinas abriram e fomos envolvidos por um som maravilhoso das propagandas argentinas, como são lindas, bem feitas...Iniciou o filme, claro que não tinha o som de um cinemax... mas eu estava curiosa nos efeitos especiais e isto foi mágico...
CID AO PIANO - É, Libres é assim para mim, me passa a nostalgia que não encontro em nossa cidade. Aqueles bons tempos de Uruguaiana que deves sentir saudades é claro que mudaram pois fizemos parte de uma geração de juventude rica, com poesia, com sentimento onde o amor era lei.
Eu trabalhei muito com filmagens e fotografias de festas no início da década de 90, fiz trabalhos maravilhosos de montagens com música erudita e trilha sonora de filmes e via nos bailes as meninas dançando sozinhas e os meninos com um copo de bebida só olhando... Desconhecem a delícia de dançar de rosto colado...Mas no Clube Caixeral tem estes bailezinhos para casais nos sábados com um conjunto ao vivo cantando Roberta Miranda e todas estas músicas cafoninhas de época.
Quando estivestes aqui notastes que o atual prefeito iluminou e valorizou a praça e ainda existe os footings em fins de semana, mas nada a ver com os de nossa época onde todos nós desfilávamos com glamour. Cid Guez toca e canta no kiosque em fins de semana e fica legal sentar ali para bater papo e acompanhar seu repertório maravilhoso, músicas de nossa época.”
RETORNO – Bebeto Alves, secretário de Cultura de Uruguaiana, anuncia o lançamento dia 21 da revista Fronteira (já tem um tira-gosto no portal Uruguaiana), uma vitória dele, da sua brava equipe e do prefeito Caio Riella. Lá está reportada uma fatia importante da vida uruguaianense, desde o carnaval que veio diretamente do Rio de Janeiro via Fuzileiros Navais (pois lá tem água e fronteira, duas missões da Marinha), até o perfil do inventor Jesus Maria Macuco, um assunto originalmente criado para o projeto da revista Vocare e que hoje encontra pouso num veículo que fará história. Bebeto pegou o touro a unha e fez acontecer um projeto que é um marco cultural, pois somos do Brasil, país que desconhecemos, e precisamos saber como é a vida em todas as bandas deste continente.
1 de fevereiro de 2004
O EXCESSO EM DENYS ARCAND
Invasões Bárbaras, o filme do cineasta canadense que dá seqüência a "O Declínio do Império Americano", trata da sobrevivência do espírito humano ressecado pelo excesso de conhecimento. O transbordo da informação cultural – que no fim torna-se escassa ao escoar pelo ralo numa sociedade de privilégios – é a desmoralização da pose acadêmica e o resgate da mais cruel e gratificante verdade humana: aquela que se revela pela sinceridade e a lucidez, e alcança sem querer a transcendência ao conhecer o limite imposto pela morte.
DIÁLOGOS - Se Godard é a majestade do cinema dominado pela cultura, o paraíso de uma síntese genial e insuperável, Denis Arcand é uma descida aos infernos dos consumidores dessa mesma cultura, quando não conseguem transformar-se em criadores. Ficam no limbo da superficialidade, e desenvolvem sua experiência mais importante ao promover o jogo da verdade nos mais duros e inspirados diálogos já escritos para o cinema. A conversa – insumo principal do esclarecimento filosófico – torna-se hilária pela quantidade gigantesca de informações e piadas que jorram das inúmeras escolas do pensamento universitário. Ou melhor, da convicção de que nada mais pode ressurgir da desmoralização das escolas do pensamento diante da complexidade surpreendente da História que passa pelos nossos olhos.
Nos dois filmes, a realidade é a percepção terminal de uma sociedade por meio dos seus mais privilegiados personagens, aqueles que ganham a vida para estudar e transmitir conhecimento. Parece haver culpa nessa vida curtida com jantares grandiosos, casas de campo e viagens internacionais. Mas há apenas revelação. Folhas ao vento das tendências e teorias, as vidas privadas dos personagens deixam-se levar pelos apelos dos projetos, para sucumbir diante dos antigos males humanos, a traição, a solidão, o desamparo, a frustração e a morte. Salva-se apenas a relíquia mais preciosa: a amizade.
Esse laço profundo, que leva todos de volta ao redor da cama do amigo desenganado, abre caminho para o amor possível, tanto o que foi feito para durar – que sonha com fidelidade e filhos – quanto o outro que tem o perfil da aventura. Mas este, devido às feridas acumuladas, tem menos chance de vingar. Por isso a viciada em heroína, depois de beijar o homem por quem se apaixonou – bem sucedido filho do professor que se foi – empurra-o em direção à porta da saída. Alguma lição fica do terremoto: a de que, antes de empapuçar-se de idéias arrivistas, é preciso cuidar de algo muito mais importante e piegas, que é o coração.
Ao resgatar a humanidade com esse convívio, o grupo – ou seus descendentes – terá mais condições de palmilhar a trilha do conhecimento sem os equívocos que colocaram todos a perder. Essa é uma posição otimista diante de um filme que joga pesado na desesperança, mas que acaba se costurando por meio de uma pungente canção popular.
OS DEZ CORAÇÕES DO TEXTO – Leio Pelé – Os dez corações do Rei (Ediouro, 235 páginas), de José Castello e navego num balanço primoroso de uma vida tratada com a mestria do grande ensaísta. Castello refunde o caldeirão do mito com o reconhecimento do quanto já se escreveu sobre o Rei, e devido a essa postura (que não pode ser confundida com humildade, mas com sabedoria) e ao seu talento, consegue nos trazer uma revigorada análise sobre a trajetória do craque maior. A história de Pelé torna-se então a bola que obedece facilmente aos lances de um craque do texto. Neste livro, em vez do futebol jogado sem imaginação, surge a arte da composição rítmica; no lugar da biografia bem comportada, a invenção que não cai nas tentações da firula; e em vez do modelo rígido das jogadas, a estratégia vencedora que não paga mico para a mesmice. O melhor e mais importante crítico literário do país – e romancista do primeiro time – dá um drible nas dificuldades que se impuseram diante desse projeto, e sem deixar cair a bola no gramado, atinge o gol.
RETORNO – Desta vez, o Diário da Fonte teve duas edições dominicais. Para compensar a vagareza dos últimos dias e para aproveitar o tempo disponível nesta época de preparo do Ano do Livro.
O SONO DA IMPRENSA
O vasto espaço editorial disponível nos grandes jornais não conecta a diversidade da produção do talento e com isso ajuda a travar sua divulgação. Ao mesmo tempo, nem as editoras – e até mesmo a Internet – dão vencimento à cultura trabalhada por uma gigantesca humanidade, cada vez mais ansiosa diante da injustiça que é expressar-se para poucos, e não ter o retorno valioso dos seus contemporâneos. Aqui, algumas sugestões pensadas em voz alta para enfrentar o desafio desse sofrimento.
TODO MUNDO LÊ – Falta vida às reportagens, falta alegria e gratificação na leitura, falta a imprensa escrita retomar a vanguarda, deixar de ser periférica, dizem especialistas como o professor Carlos Chaparro, e também o mais completo profissional de comunicação do país, Wagner Carelli – com quem tenho o privilégio de trabalhar e que ontem, sábado (31/01/04) deu longa entrevista ao programa Comunique-se, da allTV, junto com Mathew Shirts. Como leitor eventual de jornais – pois tenho décadas de contato com esses veículos e minha paciência tem limites – diria que a redundância é o principal problema. Não há a aposta no leitor, ou seja, cada nota ou matéria resgata tudo o que foi dito antes sobre o assunto, como se o comprador de jornais fosse um completo ignorante, que precisa ver todos os dias as mesmas coisas, pois corre o risco de ter esquecido tudo e não saber do que se está falando. Essa memória residual, comum a toda criatura, não é levada em consideração. Sobram então quadrinhos e dicas de como o leitor deverá se orientar nas páginas, dispondo de sínteses que, na mente enevoada dos editores, seriam as únicas a serem lidas. Leva-se o leitor pela mão como se ele fosse um débil mental. Pois aposta-se que ninguém lê no Brasil – um reflexo, possivelmente, da própria situação intelectual de quem edita. Ao contrário do que se pensa, todo mundo lê no Brasil. Temos um tremendo mercado editorial e as bancas estão lotadas de títulos – com belas novidades, como a revista Nossa História, da Biblioteca Nacional, que é um sucesso de público, tendo vendido toda a sua edição inicial de 16 mil exemplares. Criam-se novas livrarias em todo o país, superando-se em instalações cada vez mais completas. Compra-se mais livros e cada pessoa tem uma produção por escrito, especialmente agora, em que a Internet facilitou a vida dos textos, que correm na velocidade da luz pela rede. Tudo isso não é considerado pela imprensa, que insiste nos mesmos colunistas, nas mesmas fórmulas, nas mesmas pautas e no mesmo tipo de texto, padronizado por manuais que provocam sono.
PARCERIAS - No lugar de tentar agarrar o mundo – que lhe escapa pelos braços carregados de auto-suficiência – os grandes jornais deveriam reconhecer sua própria precariedade e estender a mão para o que se produz fora das suas fronteiras. Poderia colocar sua estrutura e recursos à disposição de equipes inteiras de jornalistas que trabalham à margem do mercado do trabalho, suando para manter-se em pé, e que se dispersam em inúmeras tarefas mal remuneradas. Basta fazer um rodízio e encartar revistas, suplementos, grupos de ensaístas sobre os mais diversos assuntos, que tivessem liberdade editorial e visual. Ganhando uma percentagem da publicidade que for conseguida pelos departamentos de publicidade e marketing das empresas jornalísticas, essas equipes teriam a chance de vir à tona e assombrar o leitor com suas revelações. Para isso é preciso grandeza, reconhecer que não se pode fazer tudo.
O que existe dentro das empresas de comunicação é um gargalo cada vez mais apertado de profissionais. Pois a sugestão que está sendo encaminhada agora ampliaria o quadro de produtores de pensamento sem nenhum ônus para as empresas – que precisam investir em tudo, menos nos seus quadros de redação, claro. Assim teríamos inúmeros projetos que seriam revelados pelas empresas e que poderiam então ganhar vida própria ou mesmo continuar, em sistema de rodízio, pegando carona no esquema bem montado que existe no mercado formal. Já existe isso, pode-se dizer. Talvez, aqui e ali. Mas esse é um projeto que deveria ser encarado de forma massiva, para que pudéssemos dispor, todos os dias da semana, de algo bem mais importante do que apenas o cardápio sonolento do noticiário diário. Por osmose, talvez as grandes redações pudessem ganhar novo impulso e vir a ser aquilo que o Wagner Carelli lembrou no programa, quando trabalhou aos 20 anos na redação do Estadão: um espaço onde haviam pessoas brilhantes em todo o canto e onde aprendia-se tudo numa profissão que é a melhor do mundo.
RETORNO – Graças a Bebeto Alves, que é secretário de Cultura de Uruguaiana, com extensa e maravilhosa obra de instrumentista, cantor e compositor, conheci Renato Dalto, um magnífico escritor da fronteira. Vejam o currículo do índio: “Primeiro, pra matar tua curiosidade: tenho alguns livros publicados, sim, mas nenhum na área de ficção. O mais conhecido deles é o Missões Jesuítico-Guaranis, um livro que editei para a Unisinos, com fotos do Eduardo Tavares. Escrevo o primeiro capítulo- os demais são escritos pelo Barbosa Lessa, Armindo Trevisan, Décio Freitas, Nestor Torelly e Pedro Schmitz. Esse livro ganhou o Prêmio Açorianos (acho que 98 ou 99). Outras publicações: Terra da Gente, para uma ONg, em parceria com o Barbosa Lessa; escrevi um capítulo do livro Éticas (editado pela Federasul e Assembléia Legislativa) , onde faço alguns perfis como do Sérgio Faraco, Olga Reverbel e Sérgio da Costa Franco.
Minha profissão original é jornalista: escrevi sobre cultura no extinto Diário do Sul ( de onde conheço um baita escritor e sujeito maravilhosos chamado Tabajara Ruas), trabalhei no Jornal do Brasil, enchi o saco e larguei empregos.Resolvi inventar coisas para não morrer numa redação. E inventei algumas. No jornalismo, fiz alguns projetos que me deram muito prazer. Por exemplo: uma série de 10 cadernos chamada Paraísos, publicada na Gazeta Mercantil (caderno do Rio Grande do Sul). Trata dos principais santuários ecológicos do Rio Grande do Sul. Comecei a trabalhar muito como roteirista. Escrevi a série Sul sem fronteiras, para a TVE-RS, dez documentários sobre o patrimônio histórico do RS- mas não esse patrimônio convencional, de prédios e relíquias antigas. Patrimônio histórico é o que herdamos, o que somos, nosso jeito de ser, as histórias que temos pra contar.
Mas o que inventei mesmo e mudou a minha vida foi criar cavalos crioulos.
Comecei num campo alheio, em Livramento, minha terra. Juntei uns pilas,
comprei um torrão pras bandas de Camaquã e trouxe pra cá a eguada. Batizei
meu chão de Cabanha Enluarada. E reatei o cordão umbilical que me liga à
terra. Isso também foi decisivo no que escrevo. Foi chuva boa na pastagem
das letras. Atualmente, passo a maior parte do tempo por lá, trabalhando com
o bicharedo e escrevendo pra sobreviver.Finalmente, devo te confessar que
tenho projetos na área de ficção. Há muito tempo, escrevi poesia, à qual
abandonei. Também não sou tão jovem assim: acabo de chegar nos 45, mas acho
que conservo o fôlego de potro. Tenho duas ou três histórias iniciadas, um
roteiro pronto para um documentário na região do pampa, várias idéias na
cabeça e acho que posso dizer e escrever coisas que agradem ouvir ou ler. E
sigo adiante, a galopito, bombeando o horizonte.” Falei para o Dalto que 45 anos para mim, é guri.