Podem ser vários, pode ser o mais relido, pode ser o perdido para sempre em alguma viagem, pode ser o traduzido pelo amigo, pode ser o que faltam as últimas páginas, pode ser o que sempre tivemos vontade de ler e perdemos todas as oportunidades. Pode ser aquele que você aplaude de pé no final, mesmo que esteja sozinho, desempregado, nos anos 60, encerrado numa república vazia e tenha fechado aquela página derradeira que diz sobre o mundo “que nunca acaba de se acabar” como aconteceu comigo diante de Cem anos de solidão, do maior escritor do mundo.
NONADA - O romance é o inventário de uma guerra, qualquer guerra. O único compromisso é com a literatura, que veste o que chamam verdade, ou memória, ou mesmo poesia. O que faz o romance é decidir o que existe de épico do fato reconstituído pela soma de linguagens atiradas no chão do tempo. Minha cena favorita de Lord Jim, de Joseph Conrad, traduzido de uma versão francesa pela música de Mário Quintana, é quando o anti-herói joga a tocha acesa no rio e, ao apagar-se, revela todas as estrelas. Ou a cena de O coração das trevas em que Marlowe cruza com seu barco o meio do nada chamado Tamisa e começa a narrar para quem o cerca, prendendo-os numa rede irresistível a que chamam história, mas que é pura magia. O romance pode ficar na sala da espera mas jamais humilha-se para uma entrevista. É o ato mais corajoso que o isolamento pode empreender, afora o fato de escapar de um seqüestro com as mãos amarradas – e isto já seria insumo para novo romance. O texto intrincado, como em Guimarães Rosa de Grande Sertão (e tão clássico em Sagarana) é a prova dos nove da leitura que se deixa abater depois de algumas investidas. Lembro que fiquei meses paralisado diante da palavra inicial Nonada, que Rosa usa para afugentar os preguiçosos.
O livro da sua vida é como o momento diante da morte: majestoso, irreversível, humano e precário; não há nada igual. Por um tempo, quando era foca na redação da Folha da Tarde da Caldas Junior em 1970, andava com os Quatro Quartetos do Eliot embaixo do braço. Nunca entendi o verso “abril é o mais cruel dos meses”, já que abril é um dos mais belos meses do ano, quando o Rio Grande do Sul dá uma trégua aos rigores do frio e do calor e aposta na amenidade da meia estação. Mas aquela edição antiga e brasileira de Eliot me encheu de boas fumaças para o exercício da escrita, naquele tempo em que enfrentei uma redação de feras e fui tratado com a generosidade que se presta aos viajantes sedentos e ainda jovens demais para pensar no pior.
SOBRA DE GUERRA - Conheço dúzias de pessoas sideradas por Os Thibault, de Roger Martin du Gard, que saiu em edição primorosa pela Editora Globo (graças, claro, à gestão Wagner Carelli) e que ainda deve estar dando sopa nas livrarias. Monteiro Lobato servia para inventarmos o verbo requeteler, pois era isso que fazíamos especialmente no inverno, quando o Sitio do Picapau Amarelo nos embalava a paz antes do sono e nos despertava para mais literatura. Tem livro inesquecível considerado científico que se lê com o prazer de um romance como é o caso de Raízes do Brasil ou Caminhos e Fronteiras, de Sergio Buarque de Holanda. Tem livro que assombra pela genialidade de sua síntese como As Brasinas, de J.A. Pio de Almeida. E livro que serve para marcar para sempre nossas vidas como Paris é uma festa, de Hemingway ou Seis contos da era do jazz, de Scott Fitzgerald. Tem livros impressionantes que li uma vez e jamais me recuperei como Metamorfose, de Kafka, O Conceito rosacruz do cosmo, de Max Heindel ou O Evangelho segundo o espiritismo, de Alan Kardec. Ou A magia do verbo, um pequeno opúsculo que mostrava a natureza divina de cada letra, representação de uma divindade que era evocada a cada enunciação do som que ela encerrava. Acredito na palavra mágica, no abracadabra. Não faz outra coisa o escritor do que ir atrás desse poder que abre portas e derruba muros. Tem livros que você não acredita não ser suficientemente conhecido como Sobra de Guerra, de José Onofre, o mais radical romance policial de todos os tempos.
O livro da sua vida é aquele que você cita cada página como se fosse sua e tem certeza que o escreveu em outras vidas, quando Deus foi bem mais misericordioso e distribuiu com mais igualdade suas graças. Pois o talento é um mistério que o universo guarda no cofre e de vez em quando abre para nos assustar. Ficar imune a essa provocação é perder o sentido da vida.
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