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15 de julho de 2025

ENIGMA

 Nei Duclós 


Eu estava dormindo no quarto de cima

Perto do meu irmão

Que há tempo não via

Quando veio a mãe de maneira aflita

Queria que um de nós atendesse a visita

Que batia no portão da casa vazia


Por que sonhamos coisas tão estranhas

Que ao acordar não sabemos ao certo

Quem somos nós em noite tão fria?


Acho que era dia mas não havia clima

Corria uma visão de hora tardia

Nenhuma explicação apenas enigma


Quem afinal a tantas horas insistia

Seria um sinal de que tudo está no fim?


Onde então, Providência divina

Devo me segurar no sono mais simples

Se vou despertar com a mãe que já se foi

Perto do irmão que há tempo não via?


Nei Duclós

14 de julho de 2025

POR ACASO

 Nei Duclós 


Amor é pensar em ti o tempo todo

Um lugar de onde não quero me retirar

Te chamam porque estás comigo há horas

Mas tu também não consegue ir embora


Esse convívio que é um momento sem igual

Em que, medrosos, matamos o tempo da estação 

Até que deixamos escapar uma palavra

Conversa séria sobre o que será de nós 


O clima não se desfaz, mas atingimos outro nível 

Agora que decidimos não brincar

E embarcamos em direção ao mar


Posso dizer enfim que és minha mulher

No sonho que por acaso brotou só por brotar

Sou o mesmo cara que não te merecia 

Fui escolhido pela beleza do destino


Nei Duclós

10 de julho de 2025

PALAVRA

 Nei Duclós 


Na longevidade Tolstoi descobriu que tudo era inútil

Suas posses, seus títulos, sua obra

Brigou em casa pois queria se desfazer de tudo

Tirar as vestes da sua glória


Por isso fugiu no inverno e morreu de pneumonia numa estação de trem


Rimbaud foi mais precoce 

Descobriu a mesma coisa aos 20 anos e não aos 82, como Tolstoi


O autor é só uma ferramenta dos anjos que sopram a literatura 

na redação das nuvens

É deixado de lado depois da missão cumprida

É esquecido mesmo com homenagens


Fica a palavra, única criação do Paraíso


Nei Duclós

REGRESSO

 Nei Duclós 


Remorso por não ter feito

Agora não tem mais jeito

Não conserto meus defeitos

Fico torto para sempre 


Livrei-me dos compromissos

Varri a porta da frente 

Lembro da mãe esperando

Na calçada o seu rebento 


Que desistiu dos estudos

Depois de tanto tormento 

Ela diz que não aguenta

A traição do estudante


Mas eu tinha outros planos

Abrir mão sem mais nem menos

Das ilusões da carreira


Comigo me desavim

Como dizem num poema

O pai achou muito estranho

O guri está variando


De tudo eu me arrependo 

De estudioso a vagabundo

Rolando pela sarjeta

Saindo da classe média 


Tudo passou, me convenço 

Menos o amargo regresso 

Ao sonho daquele tempo


Nei Duclós

JANGADAS

 Nei Duclós 


Posto demais. Mais pelo registro do que pela leitura.


Porque ninguém atura tanta produção. 

É a longevidade que conduz ao excesso. Ou à falta de compostura.


Não há futuro quando a literatura no lugar de fonte vira mar.

Palavras salgadas vindas de Portugal. Que aportam no Brasil depois de Cabral. 


Cais da perdição. Jangadas de não voltar.


Nei Duclós

ENFIM

 Nei Duclós 


O ser é o nada

O verbo ser

O nada a ver


Dizer não sou

Quando és 

Nada aos pés 


Surta solidão 

Corso de ilusão 

Andor de procissão 


Um poema é o mínimo

Para sobreviver

Enfim criar amor


Nei Duclós

7 de julho de 2025

OUVIDORIA

 Nei Duclós 


Acho que Deus se aborrece

De ouvir sempre a mesma ladainha

Tantas vezes repetida

Sem que a reza revele

O poder de uma oração


Preciso encontrar as palavras

Que me aproximem do Seu ouvido 

Onde buscá-las 

Cercadas pelo cotidiano entulho?


Peço socorro a Maria

Que todo santo dia

Nos assiste

Com paciência infinita


Basta escutar os anjos, ela me diz

Os que chamam de inspiração

E são emissários do Espírito 


Deus escuta

Mas poesia Ele presta mais atenção 


Nei Duclós

6 de julho de 2025

AURORA

 Nei Duclós 


Por ter escrito tudo

Amargo esta noite o abandono do poema

Cruzei a linha de chegada

E revisito o já dito com reservas


Exagerei na dose da vocação precoce

Que na tardia idade revelou as sobras

Do verso de improviso, do texto sem retoque


Muitos não concordam e selecionam estrofes

Que cometi jovem no calor da hora


Deveria, no capricho, me aprofundar no ofício 

Mas tudo veio fácil como um vento forte


Agora não sei o que dizer, em plena aurora

Talvez o sol, gigantesco sábio 

Queime o remorso e revele a obra

Tudo o que fiz com sangue nas mãos e água nos olhos

Pobre coração ainda intacto


Nei Duclós

NOBREZA

 Nei Duclós 


Meu luxo é sobreviver 

Chegar bem no fim do mês 

Para então recomeçar 

Sustentado pelo ar 

Muitas contas para pagar 

Eu dependo de você 


Sem força de levantar

Rima pobre popular

Ainda tudo por fazer

O livro parei de ler

Amor que é bom só virtual

Um vizinho põe o som


Meu luxo é teu respirar 

Janelas de par em par

Futuro ficou para trás 

Eu não tenho mais lugar

O país caiu de vez

Mas a nobreza é ter voz

Canto para não morrer


Nei Duclós

4 de julho de 2025

SOMBRA

 Nei Duclós 


Este que você vê não sou mais eu

O que fui sempre serei

Guarde o que o tempo não comeu

Esqueça no que me transformei

Essa sombra de mim, que já fui rei


Prefiro preservar dias de amor

Quando fui teu


Nei Duclós

UMA FLOR

 Nei Duclós 


Que haja calor no inverno

para suportarmos o ar polar


E vento sul antes do sufoco do verão


E o friozinho do outono adoce os frutos da estação


E a primavera traga teu perfume

Feminino amor


Nei Duclós

CONJUGAÇÃO

 Nei Duclós 


Não adianta querer se você não é 

Não adianta ser se você não quer 

Não adianta ver se não tiver fé 

Não adianta ter se nada houver

Só tem que nadar quando não dá pé 

Quando for rezar pense no amanhã 

Cada verso faz o teu navegar 

Caia se essa força não te socorrer 

Volte a levantar todo amanhecer


Nei Duclós

3 de julho de 2025

PERDIDA

 Nei Duclós 


Eu não preciso de tempo 

Eu não preciso de amor

Podem dizer que sou lento

Não mais importa o que sou


A não ser que marques encontro

Um café ou apartamento 

Que me apresse e nunca te perca

Desta vez, perdida para sempre


Nei Duclós

1 de julho de 2025

ABERTA

 Nei Duclós 


Estrelas da minha fantasia

Fazem rodízio no paraíso

onde vivo

Dispondo as peças do xadrez de sonhos 

Sou o peão e o rei é o tempo

Que escorre pelos dedos longos


Poderia tocar piano minha flor aberta

Debaixo das cobertas

Cabem todas as teclas

Fique perto


Nei Duclós

28 de junho de 2025

QUATRO ESTAÇÕES

 Nei Duclós 


No inverno ficamos mais velhos

A idade não avança na primavera 

Depois o verão queima todas as células

Mas chega o outono e você se recupera


Não que remoce

Ou se acostume com a perda 

Mas o tempo repõe o que mais queres

Tua fome de amor por uma incerta princesa


Nei Duclós

CORRERIA

 Nei Duclós 


Admiro quem se movimenta

Anda corre pula dança 

Eu também estive no front

Sem tanta intensidade, só para o gasto

Hoje observo os contemporâneos 


No fundo, passei a maior parte do tempo 

Sem ter o que fazer com meu corpo

Sonhei, mas isso todos são capazes

Fiquei, quando me diziam vamos


Ao me verem deitado repassavam encargos

Que eu cumpria a caro custo

O que me empolgava eram os estudos 

E os versos na máquina Smith Corona


A literatura foi minha maratona


Nei Duclós

27 de junho de 2025

JUNTOS

 Nei Duclós 


Às vezes falo sozinho

Rompo o silêncio, por certo

  É quando digo a verdade

E não quero que contestem


Já me basta quem tece

Armadilhas da conversa 

Prefiro ser o que penso 

E que ninguém esclarece


Assim mesmo tem assunto

Que eu não consigo consenso

Peço a palavra insurgente

E brigo por um aparte


Já quiseram me internar

Mas fácil me recomponho

 É só uma trova, paisano

Segue a roda e estamos juntos 


Nei Duclós

26 de junho de 2025

MADEIRA

 Nei Duclós 


Falo na madrugada para o nada

Ruas vazias, janelas fechadas

Inútil boemia de bêbada sorte

Sou o último poeta desse pobre porre


Falo lesado pelo destino incerto

Quando veio minha vez tudo estava morto

Quis saber do mistério mas ele também se cala


Resta a ilusão de que uma hora amanhece

Aí quem sabe a vida acontece

E desperta o que tinha de múltiplas vozes

Enterradas no peito de madeira nobre


Nei Duclós

25 de junho de 2025

PERDA

 Nei Duclós 


Já não te enxergo mais, corpo do avesso

De tão exposta perdeste a forma 

Eras cascata em tarde no outono

Hoje és a flor escondida no ermo


Aperto os olhos e nada vejo

Apenas ouço teu passo de seda

Assediando o poema, que cego te perde


Nei Duclós

24 de junho de 2025

INVERNO

 Nei Duclós 


Tua lembrança aquece o quarto frio

Na solidão o inverno é o coração 

Sem esperança de um dia retornar

À dança de salão onde fui te namorar


A memória é uma estação de esqui  

Lá eu deslizo para bem longe de ti

Aceno com meu gorro de lã gris

Mas a neve te leva para não me ver


Atiço a brasa que está quase por morrer

A coberta gasta não consegue segurar

O telefone tinha o hábito de tocar 

Mas os teus dedos escorregam para o mar


Nei Duclós

22 de junho de 2025

VALOR

 Nei Duclós 


Toda obra joguei na calçada 

O tempo devorou seu valor

Versos sem apoio

Poemas furta cor

E tu distante porque viste

No primeiro instante 

O que eu exibia fingindo amor


Nei Duclós

20 de junho de 2025

DEMORA

 Nei Duclós 


Fiquei preocupado hoje

Custou a amanhecer

Pensei: e se a noite decidir ficar?

Não a noite de estrelas e luar

Ou a nublada com sua dose invernal

Mas a noite que se assenhora da manhã

E demora em treva temporã?


Essa escuridão sem a origem crepuscular

Invasão que devora o dia ainda no ventre

Assassina da promessa da claridade urgente

Estação do amor conosco sempre 


Temos fome de café com pão 

Que é o sol, nossa ração diária


Não inventa, poesia, de nos assustar 

Não tenho saúde para suportar a dor

De esperar a alvorada antes de morrer


Nei Duclós

17 de junho de 2025

OCULTA

 Nei Duclós 


O grande amor é um relâmpago 

Ilumina por um segundo

Depois te joga no escuro 


Não tem vocação de ficar junto

Não vive para repetir o escândalo

De aparecer de repente com estrago


Sua meta é  a fuga

Não se responsabiliza pelo que abandona

Acha muito a sensação que dá de graça 

Por isso é escassa, se vinga

De sua natureza bruta


Volta amor, dirás sozinho

Enquanto ela ri oculta em tua fantasia 


Nei Duclós

CREPÚSCULO

 Nei Duclós 


Já escrevi sobre tudo 

Praia deserta, calça de veludo 

Amor partido, perda de rumo


Sobrevivi, poeta de água doce 

Veterano precoce

Porre de aventura


Sei que perdi, queda no abismo

Mas vitória é para os fracos, gozo iludido

Vale a lucidez, crepúsculo de vidro


Nei Duclós

10 de junho de 2025

VIDRO

 Nei Duclós 


Não lembro deste corpo de vidro

Que quebra ao primeiro vento

Este poema partido

Em trens de longo trajeto


Não lembro de ter esquecido

O momento mais ferido

Herança no eterno presente

A pulsar como um espinho


Sou o que fica para sempre 

Pastor de estranho rebanho

Na montanha bebo a água

Que forma o esquecimento 


Nei Duclós

2 de junho de 2025

RETORNO

 Nei Duclós 


Não tenho mais o retorno

Não perguntam, nem respondem

Continuam ocupados

Sou tratado como estranho

Celebram, enquanto me excluem

Desse bizarro mercado


Já fiz parte dessa obra

Quando me dava importância

Agora chegou minha vez

De ser cachorro sarnento


Cumprimento para o vazio

Nem mesmo o vento me acena 

E se acaso apareço 

Está vivo, se surpreendem

Num alvoroço de perdas


Nunca fui muito chegado

Recolhido ao próprio canto

Fui alguém quando chamado

Mas nunca fiz muito esforço


Por isso passo ao largo

Fingindo que não me importo

Mas isso dói em silêncio 

De um veterano da guerra


Hoje quem bate na porta

São as lembranças de um tempo

Que não me sai da memória 

Vivi porque Deus permite

Venci porque fui História

Não mereço ter a sorte

Do bem querer que acompanha

Quem é antigo e apanha

Da vida que não dá trégua 


Nei Duclós

1 de junho de 2025

DUAS ALMAS

 Nei Duclós 


Procuras por poesia 

Por isso evitas meus insultos

Mesmo que não busques, ao ficar decides

compreender o verso elaborado bruto

Que gera ametista, tua leitura


Assim vamos, duas almas perdidas

Uma que verte areia na paisagem dos sentidos

Outra que extrai água de camadas profundas

Tua epifania


 Nei Duclós

28 de maio de 2025

DIGO

 Nei Duclós 


Falo por falar

Escrevo para valer


Digo por fazer

de conta do saber 


Só lendo é que eu sei 

Segredos de ninguém


O que você não vê 

É a letra que escondi


Vejo a mão de Deus 

No livro que lancei


Um dia repeti

O que não escutei


Depois me arrependi

No mar onde sou rei


Nei Duclós

27 de maio de 2025

DESCOBERTA

Nei Duclós 


A vida é real, concreta. Mas quando chega a terceira idade você descobre que tudo é uma ilusão. Você enterra a biografia, as amizades, pessoas da família e vê envelhecer quem existia como presença permanente e parâmetro do teu imaginário. Os corpos despencam e a mente acumula equívocos.


Só tu, meu amor, estrela guia, flor da lua, serena e divina paira no ar do apocalipse. Seja você quem for que deita em meu sonho como orvalho na pétala amanhecida.


Nei Duclós

25 de maio de 2025

ALMA GÊMEA

 Nei Duclós 


A verdadeira nobreza é o sentimento 

Não o dinheiro

Que não compra linhagem nem beleza


Sem amor somos apenas carne 

Ossos e nervos

Animados por um mistério, a vida

Que na essência vai atrás do que sente

Alguém da família, ou amante, ou amiga


Por isso existem príncipes e princesas

Talvez na monarquia mas nem sempre

Normalmente descobertos por acaso

Nas ruas de desespero e desconfiança 


Venha, nobre coração 

Alma gêmea 

Nosso brasão são momentos de ternura

Que brilham no sol da tarde e no luar 


Nei Duclós

DECISÃO

 Nei Duclós 


Não cumpri a promessa

Recuei na conversa

Rasguei o contrato

Não mantive a palavra

Teimei no meu erro

Não fui ao concerto


Falhei todo o tempo

Saí pelos fundos


Não vou quando é certo 

Fiquei no chamado

Fugi nessa hora

Corri mesmo perto


Avisei, mas não viram

Escolhi mar aberto 


Nei Duclós

22 de maio de 2025

ESTÁDIO

 Nei Duclós 


Agora me perdi, flor do cerrado

Monte que no pampa submerge

Em mares de neblina mal chega o inverno

Gruta onde esqueci o som de algum milagre


Onde estarei se o mar ainda é incriado?


Caí no chão que a lama tece

Entre o troar da tempestade

Acorreu-me o sonho, escudeiro pobre

Levado de arrasto por uma estrofe


Tudo é o verbo que inventou e sofre

O mundo que nunca me socorre

Aguardo o desfecho, jogo de bola

No estádio vazio e o coração mais forte


Nei Duclós

21 de maio de 2025

TRUQUES

 Nei Duclós 


O desejo era secreto

Pois teu corpo estava oculto

Mesmo tirando a roupa

Não exibias teu mundo

Palavras como recôndita

Íntima, úmida, crua

Guardavam o prazer imenso

Que não confessa seu nome


Não que estivesses nua

Sob a capa dos sentidos

Que espicaçavam os brutos

Mas sim porque não diziam

O verbo em libras dos mudos


Foi assim que vi primeiro

Os segredos femininos

Antes que todos notassem

Teu andar sobre a laguna

Caminhas como nos trilhos

Trafega o temor 

do escuro


Vestido, echarpe, biquíni

Tudo nos leva à tortura

Depois ao lado da cama

Existes só de mentira

Porque a musa na armadilha

Usa seus subterfúgios


Sou suspeito, vivo à toa

Nos truques do teu destino 


Nei Duclós

19 de maio de 2025

MESMA MOEDA

 Nei Duclós 


Antes de eu nascer

O mundo não precisou de mim

Depois, muito menos

Continuará normal

Quando eu desaparecer 


Por isso esse beijo desnecessário que te dou

É a única prova de que a indiferença do mundo

É a sua principal vítima

Via de mão dupla

Ele ignora, eu retribuo


Nei Duclós

5 de maio de 2025

CADA UM

 Nei Duclós 


As almas são impermeáveis

Não reagem, apenas devolvem

As consciências estão fechadas

Portas da percepção com cadeado


Não adianta insistir, apresentar provas

Dentro do Outro ninguém tem acesso

Só se convencem se houver sintonia

Entre o que está dentro

Com o que vem de fora


O influencer e o formador de opinião 

São anedotas

Cada um é o seu supremo vórtice 

Topo do mundo, que na cadeia alimentar

A tudo devora


Nei Duclós

LÁGRIMA

 Nei Duclós 


Quem somos nós que choramos por nada?

E que todos riem como se fôssemos palhaços 

Escondemos o rosto para que só Deus veja

Esse sentimento que de nós transborda


Somos derretidos diante do milagre

Não choramos por lamentar a barbárie

Isso todos os sensíveis fazem

Somos diferentes, essa emoção que mata

Porque a vida não se explica nem com verso e prosa


É inútil escrever por isso tanta lágrima 

Choramos juntos, eu na noite alta

E tu, diurna, pranto de tua obra


Nei Duclós

3 de maio de 2025

ESPÍRITO

 Nei Duclós 


Não tenho fim nem começo 

A não ser um verso sem pé nem cabeça 

Que não foi convocado e não consegue dizer


Ele próprio é apenas um ser

Que veio de um lugar que só eu sei

E por isso não poderá conquistar o que for


Sou um espírito antigo do mar


Nei Duclós

30 de abril de 2025

URGÊNCIA

 Nei Duclós 


No dia em que eu sumir de vista 

Por alguma urgência, um escândalo, um naufrágio 

E meus passos forem confundidos na areia

E a memória cair no esquecimento

Nada haverá que me traga de volta

Nem os versos ou a trajetória


Estarei no espaço a mim dedicado

Quando aqui cheguei e eu ignorava 

Uma curva na estrada do parque abandonado

Teu colo, talvez tua cama

Íntima beldade do meu sonho


Nei Duclós

28 de abril de 2025

FUI MELHOR

 Nei Duclós 


Fui melhor quando era moço

Com a idade, piorei

Quem me vê assim tão torto

Pergunta por onde andei


Pelo deserto do tempo

Pelos mergulhos do mar 

Nas guerras não declaradas

Nos desacordos da paz


Mas nada se justifica

Todos conhecem o caminho

Lancei talentos no abismo

Perdi chances de ganhar


Fui melhor quando era moço 

Agora vou devagar

Ando com muito esforço

Vejo o que não enxergo

Ouço o berro e nada mais


Da polpa restou o caroço

A vida se vinga à toa

Estou cada vez melhor


Nei Duclós

22 de abril de 2025

LONGE

 Nei Duclós 


Abraço meu braço 

Que é teu corpo

E beijo tua mão

Que é meu rosto


Digo num sopro

palavras doces

Mas não respondes

És apenas sonho


Quem sou eu?

Pobre esboço 

Do amor antigo

que joguei fora


Fomos embora

e hoje soluço

Junto ao poço 

Que é meu espelho


Durmo comigo 

Flor que não tenho

De longe venho

Para longe voo


Nei Duclós

19 de abril de 2025

VOZ DE PRISÃO

 Nei Duclós 


Alguém me deu voz de prisão 

Não sei quem foi, mas estou preso

Não saio da cela e perdi todos os amigos

Achei que estava morto

Mas as contas não param de chegar


Já escrevi longas cartas para as autoridades

Mas não obtive resposta ou talvez nem foram entregues

Por isso diminuí o volume dos meus recados

E espalho papéis entre os pássaros que buscam comida que não tenho


Lamento tamanho desperdício

Não escrevi o romance da minha geração 

Fiquei proscrito no poema

Que é uma forma de oração


Rezo todos os dias pela liberdade 

Do meu país, da minha cidade

Alguém me diga o dia que poderei ir embora

Longe de quem me prendeu

E esqueceu as chaves


Nei Duclós

16 de abril de 2025

AMANHECE

 Nei Duclós 


O sol acorda tarde no outono

Exausto da trabalheira do verão

Avança tímido sua precoce claridade

Que desliza como onda próxima do mar na escassa areia


Insone, aguardo o momento em que me despeço das lâmpadas acesas

Que ficaram em vigília junto com o cão

Na noite interminável 

E fico aliviado com as gotas diurnas de luz

Que borrifam as árvores impregnadas de plumas e pios


Amanhece lentamente no tempo parado onde me encontro

A descobrir que o futuro é idêntico ao princípio 

No ciclo inaugurado pelo verbo encolhido de frio


Nei Duclós

13 de abril de 2025

NOVIDADE

 Nei Duclós 


Revirei os arquivos em busca de um verso em tua homenagem

Não achei

Talvez por seres recente e eu fui além da data de validade


Mas o amor não pergunta, escreve

Na pele dos dias o prazer de verdade

Então procuro criar a palavra sem uso

Para fazer justiça ao que sinto


Só que o poema me falta

Beldade do abismo

Perdi muito tempo na forja da linguagem

E tu me trazes uma novidade 

A qualidade física do sentimento 

O beijo de mel e carne


Nei Duclós

11 de abril de 2025

CUIDADO!

 Nei Duclós 


Poema derramado de amor é falso.

Amor é conflito na véspera do amasso. É remorso no tempo tardio do desencontro. É paz desesperada.

Não minta , porque o amor não é trouxa.

8 de abril de 2025

ESTA TERÇA

 Nei Duclós 


O Tempo poderia estacionar nesta terça-feira

Em que o Outono frio aos poucos se esquenta

Conforme o sol vai avançando sobre a sombra

E todas as dores dão um tempo nos ossos

Enquanto nos acomodamos na úmida varanda

A percorrer o que vivemos com o canto do olho


Seria uma espécie de eternidade amena

Sem destino a cumprir, apenas o ponto

Onde a paz sobra nos extremos


Até poderia depois migrar para a semana seguinte

Mas esta terça ficaria a sós comigo dentro 

O momento máximo de realização terrena

Quando tudo está por fazer apesar de muito que já foi feito

Uma espécie de acordo para evitar a guerra

Assinatura de espíritos de uma fé suprema 


Nei Duclós

3 de abril de 2025

FUTURO

 Nei Duclós 


Quando você for velho e todos teus amigos estiverem mortos

único sobrevivente da tua espécie

A encarar ainda vivo o rosto de Deus 

E teu corpo ringir como armário antigo

Em casas assombradas pela memória

E não houver nada a não ser a companhia extinta do teu sonho

Verás que foi tudo uma ilusão

E tua vida não cumpriu vontades terrenas

Como andar sobre as águas ou fundar um reino 

E serás apenas mais um na fila que os anjos organizam

Para as almas se recolherem ao que resta de um Paraíso

Que foi teu amor perdido e ainda intacto

Como um verso dito num céu obscuro


Nei Duclós

2 de abril de 2025

OBRA DO AMOR

 Nei Duclós 


De todas, a mais bela

Por obra do amor

Do que o amor fez por ela

Definiu o rosto conforme a aurora

Desenhou os traços da primavera

Decidiu a flor que lhe cobre a fronte

Sem nenhum plano, no meio da tarde


De todas, a que ninguém torce

Porque nasceu assim, destino nobre

Força de quem fica em plenitude 

Na espera de alguém, só por esporte 


Metais não desafiam a sua corte

Ela contém o verbo, de outras vidas

somadas em seu regaço 

Onde me recupero

e para sempre moro


Nei Duclós

29 de março de 2025

DESCOBERTA

 Nei Duclós 


Cada dia descubro novos tesouros em ti

Vivências ocultas que vem à tona

Momentos que inventas quando menos se espera 

Canções que não lembras e assim mesmo cantas

Sonhos bizarros que já não mais te atormentam 


Cada dia é uma nova festa do sentimento

Admiro à distância pois sou suspeito

Poderão desconfiar que eu te amo


Nei Duclós

23 de março de 2025

,SUDOESTE

 Nei Duclós 


O sol nasce à esquerda do meu quarto

E deita à direita da varanda


Dos ventos prefiro o sudoeste

Mistura de brisa de outono com lascas de verão 

Sopra intermitente depois do almoço

(pastel de carne com vitamina de mamão)


Faço a digestão na tarde morna acariciada pelo meu vento favorito

Max na grama aguarda a visita da dona, a neta

Que ao chegar proíbe que eu ralhe com seu protegido


Ele se aproveita e percorre a casa fuçando tudo

Como se não houvesse mais amanhã 


Vou para o quarto e ligo o ventilador virado para a parede

É meu sudoeste doméstico que acompanha minha navegação 


A vida é um cão de guarda

Que aguarda a visita de quem traz amor


Nei Duclós

22 de março de 2025

PAZ

 Nei Duclós 


Pássaros fazem algazarra às cinco da manhã 

Quando ainda está escuro

E a tímida claridade continua no ovo

Custando a despertar


Sem sono, faço café para o corpo se acostumar

Ao fim da noite

E ao lento passo pesado de um sol que não se anuncia

Mas sabemos que ele não depende de profecia

Para inundar sua amante, a Terra

Onde experimentamos viver uma eternidade

Enquanto cavam as trevas com o terror de suas pás 


Teremos paz

Alguns segundos antes de amanhecer


Nei Duclós

19 de março de 2025

LUZ VIVA

 Nei Duclós 


Não vi a lua de sangue

Nem a chuva de meteoros

Não vi a aurora boreal

Nem Ovnis em Nova York

Desconheço os annunaki, e os sumérios 

Acho as pirâmides um saco e sua ausência de sarcófagos

Por mim todos os arqueólogos

Que querem reescrever a História 

Deveriam fazer cinema

Junto com Harrisson Ford


Não acredito que estrelas

Sejam apenas luz morta

A ciência é cega e o poema

É tudo o que nos resta


Nei Duclós

17 de março de 2025

MALABARISMOS

 Nei Duclós 


Jogo de palavras

Não garante o poema

Aproximar as sílabas de significados opostos

Equilibrar sintonias como os pratos no circo

Ou malabarismos de trapezista


Tudo isso já foi tentado

Pelos mestres do ofício 

Que desistiram e voltaram para o verbo cru da poesia 


A modernidade é  um equívoco

Sempre voltamos ao verbo básico

Canteiro de madressilvas


Pode haver

Mas arte dispensa estrepolias


Nei Duclós

11 de março de 2025

RUMO

Nei Duclós 


Mal começou e já acabou o dia

Não há surpresa na aposentadoria

O mesmo rumo de manhã à noite 

A espera de algo há muito prometido


Não é a mocidade, que não tem rodízio

Nem a sorte grande, na mão dos bandidos

Talvez um temporal que varra o clima

Ou uma reviravolta na política


Saudade do tempo em que fui para a rua

Somando vocação com chuva de granizo

Quem sabe possa voar como um peregrino

De mochila e um farnel para certa ocasião


Acampar no futuro enquanto há saúde

Ter um coração e teu gesto de doçura


Nei Duclós

9 de março de 2025

ENROSCO

 Nei Duclós 


Molhou os olhos e não era choro

Era além do gozo, água de fogo

Que um soluço extraía do fôlego 

Que era curto circuito, bruto joio

Paz com remorso sem recursos

Pedindo mais cheia de vergonha


Era lágrima fora de sua fonte

Gosto de amor e nenhum decoro

Eu sabia que eras louca

Mas fiquei surpreso diante do sopro

E o que era soco virou enrosco

Lago de sonho, teu rosto de uma dor sem nome

Escândalo, esporro

Navio invadindo o porto


Nei Duclós

5 de março de 2025

ACHO POUCO

 Nei Duclós 


Acho pouco a devassa que faço 

Com a palavra que rasga, a impiedade 

Tida como literatura 

E é só vizinhança do romper da aurora


Acho pouco e jogo fora

Tudo o que sei e ignoro

Fico preso à dor de ser teu protetor e algoz

Ao meu grude sedento de flor

Que por culpa sua e arte maior 

Esse amor evapora e se refaz em nuvem de verão 

Chuva que não vem mas te molha


Nei Duclós

25 de fevereiro de 2025

CORINGA

 Nei Duclós 


Agora nada faz sentido

A morte apaga o ser infinito

E o corpo em decúbito não vibra

E perdes até a memória de um dia ter vivido


A terra aguarda a sobra do espírito 

E quem te ama se afasta como um cachorro

E o que foi dito não grita

O silêncio a tudo reduz como um tiro definitivo

Nada medra depois do estampido 

E escutas que és triste como as palavras proferidas no crepúsculo 


Aqui me tens, Deus sem misericórdia 

Nasci para este momento de despedida

E a única fé é minha teimosia

Que chamam de resistência mas é só a alegria de saber fazer um poema 

Quando o amor prova ser o coringa

Ao dar as cartas para que o jogo mau se desmoralize


Nei Duclós

14 de fevereiro de 2025

RENASCIDAS

 Nei Duclós 


Não me vendi

Por isso fui ignorado

Pelas proparoxítonas

Os cânones, os trâmites, os frêmitos


Ganhei a liberdade do exílio 

Exerço outro ofício 

O da letra morta que ressuscito


Ninguém compra

Mas é bonito vê-las trôpegas recém renascidas

Em direção ao mar


Nei Duclós

9 de fevereiro de 2025

JARDIM

 Nei Duclós 


Fui podando o entorno

Como se poda a roseira

Flores mortas na cruz de madeira

Até atingir o osso, a flor verdadeira 


A fé onde nada excede, pés de Nossa Senhora 

Que pena, disseram os colegas

Eras autêntico, agora um jardineiro

É falso esse passo descalço 


Convicto, nem respondo 

Já afiei a tesoura


Nei Duclós

7 de fevereiro de 2025

CICATRIZ

 Nei Duclós 


Minha arte cala quando consente

Por isso rala onde mata o tempo

Assim reduz o coro dos contentes 

E fica firme como raiz ao vento


Era para cansar tanto sofrimento 

Mas a poesia não vem a passeio

Acampa se houver tiroteio


Quando dizem você tem sorte

Mostro a cicatriz dos ferimentos 

Nasci torto, no canto me indireito


Nei Duclós

6 de fevereiro de 2025

ESTRELA

 Nei Duclós 


Não há vantagem em dizer o que penso

Perco tempo, perco dinheiro

Antigas amizades vão para o brejo


A solidão da consciência 

O exílio da diferença 


Vantagem faz falta mas não me atrevo

Calar o que grita aqui dentro 

Nada paga essa esgrima violenta


Não sei se sigo, estrela cadente


Nei Duclós

5 de fevereiro de 2025

SOBREVIVER

 Nei Duclós 


Respeito aos mais velhos é honrar o que você desconhece

Esse trecho de tempo que está no comando

Essa pele riscada por desavenças 

Esse passo exausto de andar e já não anda 

Essa boca murcha, esse olhar de sombra

Essa voz sem razão que aconselha o medo


Não porque você um dia chegará lá, porque não chega

Vidas perdidas foram a última chance

Mas porque você prefere esquecer o que jamais lembra

Que pretende ser o que ninguém é, um gigante

Pois tudo escorrega no alto da montanha

E somos água corrente em cachoeira

E jamais saberemos o que é sobreviver

Quando tudo está morto


Nei Duclós

1 de fevereiro de 2025

LICENÇA

 Nei Duclós 


Licença poética não existe.

Poesia não pede licença.

Poesia é seu próprio canal.

Mora em si mesma.

Cultiva um punhal

Com raízes de espuma

Água do verbo seminal


Tem o poeta, que cuida do jardim.

E oferece os frutos do pomar.

O amor que medra no quintal


Nei Duclós

27 de janeiro de 2025

MISSÃO

 Nei Duclós 


A nós cabe cumprir as profecias

E não profetizar, como os fundadores 


Fora do cânone somos o que chamaram de esperança 

Confiando no futuro

Como se o porvir já estivesse pronto 


Ficamos com a parte mais difícil 

Herdar certezas que não fazem mais sentido 

E lavrar a terra bruta que nos legaram entre espinhos 


Temos poucas mãos 

para essa missão de manter o mundo

Mesmo depois de destruído


Nei Duclós

23 de janeiro de 2025

LIMITE

 Nei Duclós 


De você não quero nada

De você, amiga

De você irmão, amada

Das promessas, asas, falas 


De ti, destino

De você, futuro

De mim, mendigo


Não é cansaço, apenas digo

Uso o fruto da palavra

Nada demais

Depois de tanta vida

Antes do tempo surdo


Não espero, não consigo 

Não carrego compromisso

Sou meu limite

Esse porte de arma

Esse pote de arco-íris


Nei Duclós

19 de janeiro de 2025

ALVENARIA

 Nei Duclós 


Não discordei de quem me considera

Poderia ser desaforo, mas não era

Apenas meu jeito de ficar na cela

A remoer opiniões que não libero 


Quisera ser outra pessoa 

Não esta fera

Sem compromisso

De agradecer por permanecer vivo

Chutar o balde, dizer isso e mais aquilo

Será que essa decisão me aliviaria?


Difícil conjugar o verbo na alvenaria

Da gramática bruta e frases de granito

Escolho as vogais, letras do espírito 

Vozes do que serei, mais ou menos dia


Nei Duclós

17 de janeiro de 2025

PASSA PASSARÁ

 Nei Duclós 


Pássaro é o amor que canta

Não o que virá

Mas o que se apresenta 

Voz de outras bandas

Plumas ao vento


Pássaro é no fio um pouso

Ninho de galhos tortos

Saliva no barro podre 

Água que cabe no bico

Cisco para o almoço 


Pássaro é corpo, é coro

Que joga na janela

Uma flor, só de retoço 

Te convida para o voo

Não vais, e parece nojo

Mas é que também passas

Para não ficar à toa


Pássara, esse é o assombro 

Pintada de branco e roxo


Nei Duclós 

9 de janeiro de 2025

DESAPAREÇO

 Nei Duclós 


Não posso recusar tua presença 

Que veio do amor e hoje é doença 

Teu corpo feito de promessa

Olhar que inunda e fere como lança 


Dizer eu te amo tem controvérsia

Sou súdito anônimo, mísero poeta

Diante da deusa sumo de vista

Fica o perfume de um coração exausto


Nei Duclós

8 de janeiro de 2025

PROMESSA

 Nei Duclós 


Quisera dar esperança 

Mas isso não me pertence

Nada que eu tenho te alcança 

Exceto doses de espanto 

Precária flor da alma tensa


O que eu sou não te resolve

Não propõe força e confiança 

Frágil som de muda banda

Corpo exausto em fé humana


Mas o que tens me complementa 

O que és impede o tombo

Vens de longe como um vento 

Gerado em firme promessa


Nei Duclós

6 de janeiro de 2025

ESPERANÇA

 Nei Duclós 


O mundo derreteu aos nossos olhos

Os heróis se revelaram patifes

E o que era vasto

Tornou-se mesquinho


Tínhamos presença nessa época

E o respeito, que se desvaneceu


O maior crime foi a palavra

Que apodreceu dentro de nós 


E o amor tornado inútil

Depois que você partiu

Dos meus espaços 


Só a esperança permaneceu

Como cão que guarda a alma

De quem o alimentou


Nei Duclós