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28 de agosto de 2024

POR FORA

 Nei Duclós 


Abandonei as notícias

Deixei-as longe de casa, acima do muro


Espero que sejam felizes

E se desenvolvam e se sustentem

Com suas cargas de fantasias

Diagnósticos , sinucas de bico

E ressuscitem para continuarem vivas


Eu prefiro ser o xingamento favorito dos meus pares 

O de ser um jornalista mal informado

O cara do copy

O pauteiro sem futuro

O sujeito que não soma

Apenas faz número no circuito sagrado das pensatas e redações prestigiadas 


Sou o cara das atas

Que reporta as reuniões dos pássaros


Nei Duclós

26 de agosto de 2024

SELFIES

 Nei Duclós 


Essa felicidade em grupos ou solitária 

Exposta como carne ao sol

Não desejo nem admiro

Deixo estar senão complico

Não tire o mimo do colo alheio


Não quer dizer que implico por prazer

Talvez seja o repeteco em tantos perfis

E cada vez mais raro o hábito de não sorrir 

Por qualquer falta de sentido 


Não significa que toda a felicidade seja ilegítima e absurda

Tudo pode ser

Só que descobri

Que a verdade tem perna curta


Nei Duclós 

CASCA VAZIA

 Nei Duclós 


A casa é uma casca vazia

Quando os filhos se retiram

E ficamos sós 

Com nossa vida mínima 


Fazer a comida, varrer o piso

Conversar sobre as notícias

Usar todas as roupas em dias de frio

E temer a noite 

Canteiro da memória 


Vivemos então o futuro tão anunciado

Quando achávamos que se mantinha uma porção da realidade

A mesma que nos criou e hoje é passado


Dizem que tudo é ilusão

Mas não é verdade

O mundo é feito de granito

Agora, amanhã ou antes

E não de vento


Somos formigas

Sob os pés do gigante

O Tempo


Nei Duclós

NO CHÃO

 Nei Duclós 


Terceira idade é catar coisas no chão 

Que escapam da frouxa mão 

Do pé indeciso, do corpo em torção 

Da falta de alcance, da pobre visão 


Mesmo sem pressa tudo fica liso como um sabão 

Foi-se o tempo dos dez braços em ação 

Agora é um por vez, como na fila do pão 


Não se abaixar não é opção 

Deixar como está, melhor não 


Nei Duclós

24 de agosto de 2024

PRENDA

Nei Duclós 


Faça de mim a sua diferença 

Venha, rosa e avenca

Dupla dosagem de espanto

Pele e perfume 

Flor de presença 

Prenda-me

Prenda


Nei Duclós

GOTAS

 Nei Duclós 


Tenho pouco conteúdo

Vazo o que acumulo

Fonte inversa de água da chuva

Transbordo em jarro miúdo


O que resta são poemas

que jazem no fundo

Gotas com reflexos da lua


Nei Duclós

MISTURA

 Nei Duclós 


Queria ser feliz, destino amado

Ou pelo menos contente, muito obrigado 

E não partir sem sair de casa

Ou buscar o tom desesperado


Afaste-se de mim, amigo certo

Nada tenho a dizer, não fique perto

Erro por viver tamanho escravo

Ando como alvo no deserto


Pode parecer dor em excesso

Mas não sinto nada, apenas passo 

Ninguém me convence do contrário 

Escolhi meu lado e ele arde


Queria ser feliz, sou machucado

Mas não se impressione com a voz bizarra

Aprendi a misturar tantas palavras

Cante que talvez eu pare 


Nei Duclós

23 de agosto de 2024

ÍNTIMA

 Nei Duclós 


Secreta flor que me devassa

Sem se mostrar, fechada gruta

Que não pergunta nem se cala

Muda borrasca obscura 


Quem dera fosse explícita 

Posta em chapéu na carruagem 

E não esse jogo que adivinha

Nenhuma chance para o meu laço 


Mas és coberta por palavras

Difíceis de dizer em testemunho

Juras de amor, vazia praça 

Estátua de sal, doce ressaca


Neste jardim entro com o barro

Húmus sem dor, fronte de cal

Não vês que a pá debalde cava

Busco o tesouro, raiz e haste


Íntima flor, perfuma a graça

Por tua causa aguardo a balsa

No rio perfeito da nossa lágrima 


Nei Duclós

22 de agosto de 2024

VIDAS PASSADAS

Nei Duclós 


Vidas passadas são as que vivemos em anos anteriores à terceira idade

Puxamos as cenas pela memória, hipnose do tempo sem misericórdia


Não fomos reis ou vassalos nos séculos ancestrais

Mas criaturas datadas 

Nas mãos frágeis e poderosas dos nossos pais

Anjos humanos da providência da terra


Deus não interfere na guerra

Deixa que se matem

Depois recolhe quem lutou sem chance de sobrevivência 


Pergunte quem sou

Sou a criança que se fez homem

E hoje lembra

Minha lição permanente de esperança


Nei Duclós

16 de agosto de 2024

O MAR INVADE A PRAIA

Nei Duclós 


O mar quer de volta o que perdeu

E também um pouco mais, e muito além 

O abuso que alargou todas as praias

É a ambição que ofende Poseidon


O mar cedeu a Terra ancestral

E impôs areia na espaço terminal

Hoje invade as cidades forasteiras

Não pisoteie o sagrado e seu poder 


Talvez não seja vingança do gigante 

Mas amor por teu corpo de esplendor

Quer tirar teu maiô, por isso expande

O namoro que cultivas ao redor


Nei Duclós

15 de agosto de 2024

TODOS SE FORAM

 Nei Duclós 


Todos se foram e fechamos a cidade

Cuidaste dos jardins eu das ruas largas

Aviões inimigos nos espionaram

Mas sumiram depois de bombardear as águas


Foi ideia tua permanecer na casa

Tínhamos um terraço aberto para a mata

Hoje tudo é cinza, menos tua palavra

A que recitas em forma de parábola

Inclui a profecia da paz ainda nas fraldas


Faço a ronda até o limite da estrada

Mantenho longe os predadores, lobos e águias

Pões o véu e visitas a Igreja no fim da tarde


Lá nos casamos, doce resistência da coragem

Que seria de mim disperso em qualquer front

Despedaçado pela despedida?


Por isso mantenho posição

Enquanto o vento bate no campanário

O som é de solidão mas somos a vigília


Nada poderá contra teu rosto grave

O olho no horizonte, a mão que acena ao longe

Para a visita de um milagre, a liberdade


Nei Duclós

13 de agosto de 2024

PERMISSÃO

 Nei Duclós 


Permita-me sonhar, destino mau

Já me comportei em teu curral

Nunca me queixei, porque é normal

Querer ser rei do meu quintal


Agora posso, vi um sinal

Do que chamei ressurreição

Reparto o pão, pobre maná 

Na multidão que não virá 


Não importa a solidão do meu olhar

Era um deserto o que esperei 

Anjos libertam lenços ao céu 

Acenam para essa desesperança 


Deixa eu sonhar, portal eterno 

É terminal tanta certeza

Depois as sobras vire do avesso

Pois cumprirei meu sacrifício 


Não ser lembrado

É só o que peço 

Farei segredo desse desfecho

Volte para o mar onde começo


Nei Duclós

12 de agosto de 2024

CÂNONE

 Nei Duclós 


Idade provecta, tempo de soneto

Acesso ao cânone de assombroso espectro

Clássico acervo de um fazer completo

Barco pleno no navegar do gênio 


Conjugar Camões do século quinhentos

Esquecer lições de Cabral de Melo Neto

Recolher o sumo de antigo vinhedo

Ser de outra espécie, perfil de estátua grega


Sempre e qualquer arte cuida de si mesma

O ofício prende o ourives no segredo 

Não se descobre o truque, a não ser o próprio monstro


Ninguém dá bola mesmo para o palimpsesto 

Deixam que se cale o artífice imodesto

Que só expõe o ouro quando já vai tarde


Nei Duclós

6 de agosto de 2024

ESPÍRITOS NO JARDIM

 Nei Duclós 


Espíritos sentam nas cadeiras vazias do jardim

e lançam para dentro de casa olhares limpos

noto que não se importam com o sereno

e ficam imóveis em vestes brancas de linho

algodão que cobria o açúcar nos cotonifícios


Reconheço aquela antiga tia, a avó que nunca vi

parentes remotos de mundos perdidos, brasis

varridos pela chuva e submersos nos quintais

com nomes hoje improváveis como Zaida, Tita

e aquele que recitava os Sertões para as visitas


Nada lembro de ti, ancestral da minha origem

por isso meus descendentes vão se confundir

achar que a família começou comigo

Serei uma espécie de patriarca sem prestígio

nascido entre quinquilharias urbanas e telecines


Nada daquele perfil bíblico dono de sesmarias

que apascentava populações com um só grito

mas alguém que usava calça brim coringa

e brincava de mocinho sonhando com estrelas

sem prestar atenção nas heranças de sangue


Serei como o fundador de uma nação vazia

sem História suficiente para alimentar os mitos

a não ser que eu desenterre as estátuas de vidro

que se quebraram na avalanche de avenidas

e retome as histórias narradas ao redor do fogo


Serei eu então o espírito a ocupar lugar no jardim

a lançar o olhar sem mácula para a casa do futuro

onde crianças verão uma sombra entre relâmpagos

vou contar o que vivi na fantasia, já que a vida

só teve graça quando fantasmas visitavam o menino


Nei Duclós  



5 de agosto de 2024

SINAIS

 Nei Duclós 


Dois quero quero aos berros

Na praia que oculta o mar

O que diz seus desesperos

Quais sinais riscam o ar?


Os generais dos romanos

Pediam para decifrar

O voo dos passarinhos 

Só depois iam lutar


Espero boas notícias 

Enfim assinem a paz 

Que partirei de fininho

Não estou mais, irei sestear


Nei Duclós

SONHOS

 Nei Duclós 


Tenho sonhos que não gosto de lembrar

Edifícios vazios à beira mar

Com encontros 

que mal me cumprimentam


Situações recorrentes de um lugar

Nenhum aviso ou profecia a se cumprir

Sem poderes a não ser me carregar

Para vidas paralelas sem sentido


Prefiro deixá-los onde estão 

A dizer o que não ouço ou esqueço 

Com segredos que talvez tenham guardado


Já basta a vida e seus espinhos

Com tanto rio a invadir as margens

Pontes que caem, guerras sem fim

E as notícias cada vez mais impossíveis 


Saio da cama e enfrento o vento frio

A mente retorna do tempo que perdi

Criando histórias em vez de descansar

Sou um autor perdido entre roteiros

Dormindo filmo, depois jogo no lixo 


Nei Duclós

4 de agosto de 2024

CONVERSA

 Nei Duclós 


Não interrompa meus pensamentos

Disse a nuvem para o vento

Estou escrevendo, seu nojento

Vou chover no balanço que fazes no arvoredo


Vou aparecer no céu encoberto

Espairecer enquanto sopras a esmo 

Sem ninguém saber a origem dos teus movimentos


Eu reflito, mesmo passageira

Digo coisas no crepúsculo 

Enquanto tu varre a terra incomodando o tempo


Ninguém te vê, duende

Enquanto eu sou pintura e espanto

Tenho um corpo, mesmo evanescente quando chegam perto


Não gosto se me dispersas

Prefiro se me concentro

Tenho presença, e nada serias se não fosse eu a servir de palco 

Para o vendaval da tua tormenta


Nei Duclós

PROJETOS

 Nei Duclós 


Não levei adiante nenhum projeto 

Ficaram todos no ovo de antigos ninhos

Não levantaram voo nem se reproduziram

Restaram apenas ruínas e alguns remorsos 


Só o que vingou foi o poder do Outro

Que roubou ideias para jogar fora

O Mal com método tem permanência

Somos dispersos,  criação suspensa


Pior que não cabe qualquer lamento

Eu costumava  chorar, hoje não ligo

Pairo acima da minha ionosfera

Preparo cataclismas com meus restos


Nei Duclós

1 de agosto de 2024

REBENTO

 Nei Duclós 


Seleciono o poema dispensando o resto

Não a gordura, o lixo, o que não presta

Mas o resto do poema se ele fosse feito


Um drama, uma comédia, um sentimento

Remorso, memória ou sonho morto


Fica assim livre da sua essência

E pode sobrevoar em outra esfera

A palavra viva no pátio do colégio


O olhar impregnado de fagulhas

O orgulho de um rebento siderado

O poema, esculpido no granito

Desaforo que solto na cidade


Nei Duclós