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14 de dezembro de 2017

ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS



Nei Duclós

Nada sobra das 237 páginas de Angústia, de Graciliano Ramos: a nação, o futuro, o Nordeste, a imprensa, a opinião pública, a honestidade, a inspiração, o povo, as profissões, a beleza, a infância, a escola e o próprio leitor, que sucumbe quando chega à últíma página. A história não é o romance, mas o que o autor faz com a linguagem. Para compor a sonoridade e a trama do seu texto, ele usa a tragédia pessoal do funcionário público pobre do Tesouro, que faz bicos de revisão e é ghost writer nos jornais, que num acesso de loucura estrangula o oponente filho de pais ricos e donos de loja de tecidos, gordo, falastrão, sonetista e patrioteiro,   porque este lhe roubou a noiva, ruiva e vizinha, a engravidou e a abandonou.  A riqueza dessa literatura maior vem da confluência de elementos específicos (personagens e situações relacionadas com o ambiente onde nasceu e se criou) e o rodízio de linguagem que impõe um ritmo cada vez mais intenso conforme a insanidade do protagonista se aprofunda diante das decepções, frustrações, impasses e desesperos que se avolumam em sua vida.

Gostam de dizer que Graciliano Ramos, o maior entre seus pares, se define pelo corte obsessivo que faz da narrativa, reduzindo-a à essência. Não vejo assim. Ele não busca a secura e isso tem confundido os epígonos, que crestam a linguagem até torná-la inerme e obsoleta. Graciliano faz diferente. Sua essência é de outra natureza e nada tem a ver em colocar fogo nas palavras. Ele usa os lugares comuns de maneira magistral, pois estes fazem parte do imaginário e das falas do seu personagem principal, que no fim descreve todo o roteiro e o mundo ao redor. É por meio dessa criatura que tudo acontece, inclusive as manifestações das outras pessoas. Tudo está dentro da cabeça do narrador, que pinta um quadro completo de sua trajetória, desde a infância sofrida e inesquecível, passando pela mocidade de mendicância até chegar á idade adulta cheia de problemas.

Todo o livro é uma espiral concêntrica de repetições no monólogo obsessivo do protagonista, solteiro de 35 anos, que veio do interior (da serra, onde havia muita chuva), neto de dono de escravos e proprietário de terras que caducou e perdeu tudo, obrigando a famíília a sair da fazenda para morar numa vila.  Toda a riqueza desse passado se cruza, num ritmo cada vez mais intenso, com as preocupações do fazedor de artigos políticos a favor e contra, e que tem a mente perturbada pelas dificuldades que enfrentou na dureza do relacionamento com o pai, na brutalidade dos crimes e das mortes que se sucediam diariamente, na mendicância na capital, Maceió, na juventude, onde morou em pensão caindo aos pedaços.

Então que graça pode ter Graciliano se ele enxerga a humanidade como um projeto perdido e se aprofunda em detalhes sinistros do corpo em decomposição, das prisões podres, dos quintais cheios de lixo, dos trabalhadores cobertos de óleo e fuligem, das moças que são disputadas pelos gaviões e acabam na Rua da Lama? Não importa esse quadro cru e violento da vida brasileira, onde a culpa assume o perfil definitivo da personalidade do narrador. O que importa é a maestria do escritor, que nos ensina como fazer, mostrando sua relação assombrosa com as inúmeras possibilidades da linguagem. Ele aborda as pixações de rua, os letreiros comerciais carcomidos nos bares, as conversas mesquinhas de agiotas e falsos intelectuais, as interjeições dos bêbados, a indiferença dos donos de bodegas etc. É um mural que poderia ser disperso, mas é totalmente concentrado, onde a linguagem se transforma num ponto de tensão explosiva, rebentando enfim, pela leitura, numa obra que habita nosso espírito pela contundência, a genialidade, a grandeza, que são a marca desse autor que não veio à terra a passeio.

Graciliano Ramos. Não há outros autores.


Nei Duclós 

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