Nei Duclós
Morreu hoje, aos 91 anos, um gênio da Sétima Arte, Jerry
Lewis (que uma parte da imprensa brasileira chama de ator e comediante, tendo
sido muito mais: coreógrafo, diretor, roteirista etc.). Ele criou o personagem
das telas que eu fui na adolescência. Não que eu o imitasse, eu era o próprio.
Desengonçado, ingênuo, falando em falsete, sensível, sempre querendo ser
aceito, incluído pelos caras mais cool, pelas moças mais bonitas, pelos adultos
mais exigentes.
Jerry Lewis encarnou essa persona e a explodiu em filmes
inesquecíveis, em gags demolidoras, em cenas definitivas, Quem esquece o boy de
hotel que entregou o motor do volks, que ficava onde era o porta mala? O
professor que ao consultar o relógio inundava o colégio com o uma banda
marcial? O desfiador involuntário do terno do gangster? O maestro da orquestra
invisível? O amigo das mulheres, o passeador de cachorros, o tango com George
Raft e tantos outros momentos?
Ele manteve a comédia no alto nível de uma indústria que
acabou apostando no humor apelativo e sem graça. Vieram depois deles os
careteiros, os pornográficos, os cretinos. Não mais a grandeza da alma de um
artista de verdade. Jerry Lewis era poético, brilhante, um exímio dançarino.
Nos encheu de graça, de alegria, de emoção por muitos anos.
Em 2006 escrevi um texto sobre a comédia e seus links com o
drama. A parte de Jerry Lewis é esta:
Jerry Lewis conseguiu, a seu modo, desvelar a tensão que é
bater ponto no relógio da graça e trabalhar na fábrica da dor. Sua obra máxima,
The Nuty Professor, é o filme que desnuda suas verdadeiras intenções. É mais do
que uma vingança, é a reposição de papéis fundamentais, pois ele tinha nascido
para o espetáculo fazendo dupla com Dean Martin e por um bom tempo arrostou
sozinho o papel desumano do perdedor num país de vitoriosos. Sua fragilidade
empurrou-o para a emasculação, pois é comum vê-lo de avental tentando agradar
seu companheiro ou exagerando o trejeito para deixar claro que não estava
identificado com a virilidade clássica. Quando Jerry amadureceu, a ruptura com
Dean precisava ser levada dos bastidores para o centro do drama. Escolheu O
Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, para resgatar a dupla que jamais
poderia ter sido desfeita, se fossem seguidos os critérios dos resultados
financeiros, já que faturavam milhões.
O professor sem nenhum atrativo sexual, para melhorar sua
imagem com as mulheres e sair da sua miserável condição de palhaço, toma um
elixir mágico e transforma-se em Buddy Love, o galã que nada mais é do que a
caricatura de Dean Martin. É impressionante a semelhança entre Buddy e Dean e
mais ainda o fato de ninguém ter comentado isso (assim como passou despercebida
a fonte literária do vagabundo chapliniano).
Jerry resolve encarnar o misterioso conquistador para dizer
o quanto é irrelevante esse tipo de personalidade, tão cara a algumas mulheres
(que costumam confundir o cafajeste com o homem de verdade). Seu escracho é
fazer a desconstrução de Buddy Love, que no meio de uma apresentação (tinha a
voz de Dean) começa a desafinar. Incluir o professor tratado como louco no
universo das pessoas que tem direito a uma vida completa é o grande feito desse
filme antológico, que mudou a comédia para sempre ao revelar o drama do palhaço
que vicia na gargalhada e esconde o verdadeiro rosto para não perder o público.
Jerry foi fundo e chegou também a interpretar dramas de
verdade, não mais ocultos nas trapalhadas em que seu personagem se metia. Mas
sua arte serviu para repor a dignidade da inocência, como prova a magistral
cena de O Rei do Circo, em que, vestido de palhaço, tenta levar para o riso uma
criança mergulhada na tragédia. Ele só consegue seu objetivo depois de chorar.
Quando a criança (o olhar sem nenhum disfarce) vê a lágrima, rebenta no riso.
Era o que ela precisava: entender que a alegria não é o oposto da dor, já que
para rir não podemos abrir mão de nossa situação de criaturas datadas,
mergulhadas no conflito.
A verdade, que é o drama, precisa estar na base da comédia,
para que saltemos da cadeira quando Jerry Lewis coloca todo o conteúdo de uma
loja no saco de um aspirador de pó e, não contente, explode tudo na cara de uma
cliente afetada e chata. A comédia é o amor ao semelhante, assim como o drama é
a nossa contingência.
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