Nei Duclós
Com 14 milhões de desempregados e atrasos nos salários, o
Brasil continua marcando forte no jogo da fome, mesmo que essa pauta não esteja
na moda por aqui. Assunto polêmico, a fome oué fruto da incompetência dos
gestores da economia ou serve de estratégia política a partir de contingências.
O Brasil de tanta miséria é o “celeiro do mundo” (jargão da
época da ditadura de Delfim Neto), exporta toneladas de transgênicos para
alimentar os porcos da China, num desvirtuamento das iniciativas antigas a
favor da expansão da lavoura, pautadas pela necessidade e que acabou virando
moeda política. E entope o mundo de carne ruim enquanto aqui o pessoal come
farinha. Éa a mistura de situação endêmica com ambição nacional mal gerenciada.
fundada na tirania e na corrupção. Ou simplesmente pela indiferença e a doença
crônica de acumular riquezas a custa das populações.
Com a chamada revolução verde dos anos 50, o uso de
defensivos químicos para combater a pragas envenenando os alimentos,
disseminou-se a ideia de que isso iria acabar com a fome do mundo, pois era
possível aumentar a produtividade e o território arável. Mas foi apenas uma
forma de gerar mais commodities para a especulação. Ou a produção de alimentos
serve para alimentar a população do país ou não tem divisa que se justifique.
Ainda mais quando sabemos para onde vai o dólar conseguido na produção recorde.
Foi a segunda resposta americana à escassez de alimentos, sendo a primeira a
política de Roosevelt nos anos 30, quando enfrentou o desespero da população
que procurava alternativas para a pobreza.
VENEZUELA E UCRÂNIA
Tivemos dois paladinos contra a fome. Josué de Castro e
Betinho. Mas basta uma cena atual da seca ou da violência na periferia ou das
catástrofes desnaturadas para vermos de novo o espectro rondando. Agora o
Brasil tem companhia na fronteira. “Não tem comida lá”, diz a venezuelana que
se bandeou para o Brasil junto com milhares de conterrâneos na fronteira com a
Rondônia. O regime de Maduro é metido a comunista mas é apenas incompetente.
Acha que fazer justiça social é perseguir empresário e criminalizar o
empreendedorismo. Sem arrecadação vinda de atividades produtivas, não há o que
distribuir. Uma lição que os ex-radicais chineses aprenderam na prática,
pressionados pelos seu 1,4 bilhão de habitantes. Mas Maduro é verde nessas
práticas e acha que sacudir o pau para a massa o torna um líder.
Os comunistas de verdade (russos e europeus) aprenderam na
prática a lidar com a fome. A Europa precisou enviar milhões de pessoas para
países distantes para enfrentar a fome no século 19 e só se resolveu depois de
pilhar o mundo completamente com a revolução industrial e se estabelecer como
democracia social, situação que está fazendo água com a invasão africana. Na
experiência bolchevique, Lênin montou um sistema rural baseado na pequena
propriedade para evitar a escassez e a penúria, dentro dos seus planos
quinquenais. Tudo foi destruído pelo sucessor Stalin e as fracassadas fazendas
coletivas. Ao mesmo tempo, Stalin, na sua política de expansão e conquista,
provocou a fome na Ucrânia para submeter o país ao regime. Vem daí a fama de
comunista comer criancinha pois a fome de massa na Ucrânia levou a extremos que
nem é bom falar.
JACK LONDON
Leio A Filha da Neve, de Jack London, personagem que é a
filha do grande empreiteiro, megacomerciante do Alasca, monopolista e ladino,
que provoca a migração forçada para enfrentar a escassez de víveres, ao mesmo
tempo que especula com ela. Trata-se de uma contingência da época (final do
século 19) num lugar de desbravadores e mineradores que acorriam em massa para
prospectar ouro e outras oportunidades. Era muita boca para alimentar e a
solução foi colocar todo mundo em navios e despachá-los de volta para os
Estados Unidos. Assim sobrava comida para quem ficava, já que os recursos eram
pobres num território dominado pelo inverno.
O livro é magnífico, uma aula de narrativa daquele que foi o
mais bem sucedido escritor do seu tempo. Apesar das maledicências (o texto é
traduzido por Monteiro Lobato), ele coloca na roda grandes debates. Além da
fome, a questão racial e o sentimento de superioridade dos saxões – junto com a
crítica a ela, tudo ao mesmo tempo.
Fui ler alguma coisa sobre o livro e lá veio a velha
cantilena de que London era racista e tenta provar a superioridade branca, o
que é mentira, pois essa teoria, que é colocada no livro, também é contestada
por um personagem. E os seus índios do Alasca são magníficos personagens. Em
London temos a excelência da prosa, do romance, com cenas vivas e gente que
salta aos olhos. Uma bela alternativa para a pobreza visual e artística da TV e
a monotonia das redes sociais. Coisas que geram fome de qualidade, numa época
em que facínoras desviam bilhões em joalherias e obras de arte fajutas e o
corpo de balé do Municipal, junto com a orquestra, sem receber há meses, se
apresenta na rua como protesto.
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