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29 de abril de 2017

FLAKED: MARGINAIS DO BAIRRO RICO




Nei Duclós


A única coisa real de uma obra de ficção é a linguagem usada para inventá-la. Não adianta fazer turismo por lugares descritos em romances, os lugares estão nos livros. Macondo fica nas páginas de Cem Anos de Solidão, mas pode ser Budapeste, Londres ou Toscana.

A esta altura do campeonato, em que a transparência é total em todas as mídias, os velhos truques de ilusionismo não funcionam mais na literatura e nos roteiros e é preciso enxergar o espelho que reflete a imagem, a luz que projeta o filme ou seleciona a ação num palco, a fala que define o lugar . Isso é o que importa, não os conteúdos, mas a mão que leva a até eles, os recursos do estilo, da sonoridade das palavras, as formas e volumes da composição visual.

Como são os romanos para Hollywood? São os caras que usam franjas caindo na testa, como notou Roland Barthes. Isso serve tanto para a época de Marlon Brando (Julio César) quanto a de George Cloney (Ave César). O detalhe visual vale por um perfil da coletividade em tempos remotos.

Na serie Flaked, de 2016 e disponível na Netflix, não importa se a história é sobre sujeitos sem grana perambulando por Venice, bairro rico de Los Angeles, seu casos, manias e brigas. Mas a coerência do roteiro ao definir a ação de cada personagem, tecendo a armadilha de quem finge mudar num mundo em transformação, mas se mantém intacto no passado.

Para isso as pessoas ao redor são envolvidas em redes de mentiras e meias verdades, que é o sentido mais ou menos da palavra que dá título à série, criada pelo ator e comediante canadense Will Arnett, que interpreta o boa vida Chip e suas manhas  para se manter à tona depois de dez anos amargando um erro do passado (atropelou fatalmente uma pessoa) e Mark Chappell . Nos destaques também estão David Sullivan, no papel de Dennis, o melhor amigo que acorda para o egoísmo do parceiro, e Ruth Kearney, como London, pivô do desentendimento entre os dois marmanjos que vivem juntos.

A perfeita carpintaria coloca em cena o ciclista ex-alcóolatra proibido de dirigir depois do acidente, seu amigo Cooler, além de Jerry, o ex-sogro e também senhorio na loja onde vende banquetes com design, ambos drogados, a ex-esposa milionária Tilly, a namorada Kara, o novo amigo Topher, rico emergente dono de start up, a mãezona de Dennis, que é ninfomaníaca, como se dizia antigamente,  etc.

O que parece casual revela-se consistente, com o deboche permanente da cultura fake das redes sociais, as frases feitas desvirtuadas por diálogos afiados e a falsa indecisão da história, que se desenvolve de maneira firme apesar das aparências descosturadas.

Tudo acaba conquistando nossa atenção e emoção. Não cheguei ao final, mas estou achando ótimo.

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