Páginas

30 de abril de 2017

BELCHIOR



Nei Duclós

Nenhuma geração sobrevive
Belchior, trovador mais digno
canção de um novo paradigma
coração da mais pura poesia

Mas há os que ficam, trigo
de sementes rijas, floração
recente e tardia, permanência
num país que foi para o lixo

Voz de inquebrável vidro
inundação da seca e do espinho
partiste cedo, exausto do cerco
estavas de passagem, cacto lírico

Hoje eu te canto, te chamo de amigo
mesmo sem nunca estar contigo
a não ser na comunhão artística
essa nação que criamos sem crimes

Não somos a virtude nem o vício
mas o poema que encarna no espírito
temos a vocação do sopro divino
inoculamos som na muda superfície


  

A CORDA RETESADA



Nei Duclós

Nem sempre a palavra atinge o alvo
É quando volta para nós, tensos no arco
A corda retesada, a lingua solta
A traição da flecha envenenada

Queríamos esquecer mas já é tarde
O erro sobrevive ao pifio gesto
O de dizer à toa, obra dispersa

Enquanto fica imune o objeto
Ou o ser que dominava o rumo grave
Ele desaparece junto com a ofensa
E nós ficamos presos na tocaia


FUI DESCOBERTO



Nei Duclós

Fui descoberto pelos viajantes altivos
os que devassaram ilhas de mares sem lua
em tardes roídas pelo sal de Netuno

Estavam nas pedras formadas
antes do dilúvio
onde pombas pousaram com ramos inúteis
pendurados nos olhos de um tardio arco-íris

Eram apenas palavras em porção mais nítida
Em dia de homenagem a heróis sem batismo
Olhavam para mim em gáveas de neblina

Fui um fardo iluminado por um crime
o de deixar marcado em gélida planície
o poema que ninguém queria
mas que serviu de rascunho
para um tempo mais justo


29 de abril de 2017

FLAKED: MARGINAIS DO BAIRRO RICO




Nei Duclós


A única coisa real de uma obra de ficção é a linguagem usada para inventá-la. Não adianta fazer turismo por lugares descritos em romances, os lugares estão nos livros. Macondo fica nas páginas de Cem Anos de Solidão, mas pode ser Budapeste, Londres ou Toscana.

A esta altura do campeonato, em que a transparência é total em todas as mídias, os velhos truques de ilusionismo não funcionam mais na literatura e nos roteiros e é preciso enxergar o espelho que reflete a imagem, a luz que projeta o filme ou seleciona a ação num palco, a fala que define o lugar . Isso é o que importa, não os conteúdos, mas a mão que leva a até eles, os recursos do estilo, da sonoridade das palavras, as formas e volumes da composição visual.

Como são os romanos para Hollywood? São os caras que usam franjas caindo na testa, como notou Roland Barthes. Isso serve tanto para a época de Marlon Brando (Julio César) quanto a de George Cloney (Ave César). O detalhe visual vale por um perfil da coletividade em tempos remotos.

Na serie Flaked, de 2016 e disponível na Netflix, não importa se a história é sobre sujeitos sem grana perambulando por Venice, bairro rico de Los Angeles, seu casos, manias e brigas. Mas a coerência do roteiro ao definir a ação de cada personagem, tecendo a armadilha de quem finge mudar num mundo em transformação, mas se mantém intacto no passado.

Para isso as pessoas ao redor são envolvidas em redes de mentiras e meias verdades, que é o sentido mais ou menos da palavra que dá título à série, criada pelo ator e comediante canadense Will Arnett, que interpreta o boa vida Chip e suas manhas  para se manter à tona depois de dez anos amargando um erro do passado (atropelou fatalmente uma pessoa) e Mark Chappell . Nos destaques também estão David Sullivan, no papel de Dennis, o melhor amigo que acorda para o egoísmo do parceiro, e Ruth Kearney, como London, pivô do desentendimento entre os dois marmanjos que vivem juntos.

A perfeita carpintaria coloca em cena o ciclista ex-alcóolatra proibido de dirigir depois do acidente, seu amigo Cooler, além de Jerry, o ex-sogro e também senhorio na loja onde vende banquetes com design, ambos drogados, a ex-esposa milionária Tilly, a namorada Kara, o novo amigo Topher, rico emergente dono de start up, a mãezona de Dennis, que é ninfomaníaca, como se dizia antigamente,  etc.

O que parece casual revela-se consistente, com o deboche permanente da cultura fake das redes sociais, as frases feitas desvirtuadas por diálogos afiados e a falsa indecisão da história, que se desenvolve de maneira firme apesar das aparências descosturadas.

Tudo acaba conquistando nossa atenção e emoção. Não cheguei ao final, mas estou achando ótimo.

28 de abril de 2017

MUDANÇA



Nei Duclós

Seriam os móveis a alma de uma casa?
Os quadros na parede
a porta do pátio que não fecha?
Serão as marcas da pintura, a janela de vidro?
O espelho oval no corredor, as cortinas?

Essa é a sina da morada
quando se depara com a mudança?
A ausência da algazarra, a mudez da infância
Os ecos dos domingos de churrasco

Ou seriam as lembranças carregadas em cada peça?
As brigas, as conversas encontros, despedidas?

Ou será esse muro alto indevassável
que vemos no último minuto
quando partimos e deixamos um vazio de muitos anos?

Ao fechar o portão, desmoronamos