Nei Duclós
Estamos atrasados em tudo, inclusive na relação com nossos
mitos nacionais. História e mitologia (não confundir com mistificação) são
vasos comunicantes, mas tem suas especificidades. Ambos convivem bem em outros
países. Enquanto aqui ficamos marcando passo sobre o Grito do Ipiranga que não
houve (com o detalhe escabroso da desinteria do Imperador) nos Estados Unidos
eles não abrem mão de Lincoln, mesmo mostrando que o grande presidente teve de
comprar congressistas para libertar os escravos.
Na França ocorre o mesmo. A carnificina revolucionária
redundou em ditadura civil (Robespierre) e militar (Napoleão). A Bastilha nem
foi tomada pois não havia ninguém lá (exceto o marquês de Sade e suas taras). A
Queda da Bastilha como marco da Revolução foi inventada pelo historiador-poeta
Michelet quarenta anos depois. Pois vá à França ver o que os estudiosos fazem
com o passado, devassando-o sob todos os aspectos, mas lá ninguém abre mão do
14 de julho, símbolo do orgulho nacional pela República que não durou e acabou
na recondução da dinastia dos Bourbon, sem falar no repeteco autoritário do
Napoleão III já na segunda metade do século 19.
A Independência do Brasil foi um evento heroico que incluiu
uma guerra de três anos (1821-1823) e milhares de mortos. Houve luta contra as
forças armadas portuguesas. A armada imperial de Dom Pedro, liderada por Lord
Cochrane, um mercenário inglês, que, junto com as forças em terra, militares e
povo em armas, expulsou os portugueses. Estes fizeram uma revolução no Porto
para que o Brasil retornasse à situação de subalterno, pois desde 1808 ocupava
o centro do Império, com a vinda do príncipe regente e mais tarde rei Dom João
VI.
Mesmo a assinatura da Independência não coube a Dom Pedro,
mas à sua esposa Imperatriz Leopoldina, que tomou a decisão junto com José
Bonifácio.Isso tudo é Historia. Mas há a mitologia nacional, o verde e amarelo
(cores da família Bourbon), o 7 de setembro (marco mitológico da ruptura não
pacífica), a bandeira (adaptação da bandeira imperial) e o Hino (letra
republicana sobre melodia da época da monarquia).
Quando ouço os locutores anunciarem o milésimo momento
histórico do dia, insisto que a História não é visível a olho nu e depende da
costura que o historiador faz dos fatos, a partir dos documentos e das fontes.
Há inúmeras escolas históricas. Desde a clássica, de Ranke, passando pela do
materialismo histórico, de Marx, ou da Annales, dos franceses, a microhistória
etc.
O pecado maior é o anacronismo, que é ver o passado com os
olhos do presente, normalmente feito com intenções políticas, desde a velha
patriotada até a atual politicamente correta. Patriotismo nada tem a ver com
patriotada. Patriotismo é enxergar os fatos passados e celebrar a identidade
nacional por meio dos mitos consolidados no imaginário nacional. Patriotada é
usar os mitos para implantar ditaduras, disfarçadas ou não de democracia.
Não se pode tentar misturar História com os mitos. Uma nos
orienta sobre nosso passado e lança luzes sobre o que somos. A outra são
representações simbólicas que definem o sentimento de pertença, fonte do motivo
maior da existência de uma nação, que é a sobrevivência da população.
Vale o Grito e vale o escrito. Mas não o escrito no grito.
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