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26 de julho de 2016

CARAVANA



Nei Duclós

Não basta escrever. É preciso que a palavra
pouse no deserto e liberte as estrelas
É preciso a voz impregnada de utopia,
e um clima bom de acampamento

Que haja conversa onde se escuta
o som cultivado no silêncio e um mapa
do território seco, junto com a decisão
e a urgência na véspera do dilúvio

É preciso um plano, a poesia dentro
da pedra como ocorre na ametista
e possamos quebrá-la com a possante
comunhão de espíritos de uma caravana


24 de julho de 2016

QUALQUER COISA



Nei Duclós

Qualquer coisa
vira poema
Nenhum assombro
na alma pequena
como se o mundo
fosse um bocejo

Cenas comuns
na sala de espera
a vida vista
a cavaleiro
nenhuma conquista
no eterno presente

O pior é achar que foi
assim sempre
dessa maneira
e o que foi dito
é apenas ferrugem
de uma outra era

Nenhuma coisa
é o próprio poema
a palavra nasce
do que o tempo
condena. flor
de longo universo


PENSAMENTO FORA DE FORMA

Nei Duclós

O aforismo foi substituído pelo insulto e a persuasão pelo assassinato. Na nossa época, o aguardado e celebrado precocemente Século 21, o pensamento conservador perdeu a forma e degringolou no trumpismo vigorante. A esquerda, ao assumir o poder extrapolou na corrupção, desvinculando-se dos seus princípios e fundações. Ambos manejaram a tirania das ideias para impor unilateralmente posições políticas e tudo agora está sendo colhido nas ruas de Nice, Cabul, Munique.

Por não haver concessões de ambos os lados, os vírus oportunistas invadiram o tecido que parecia indissolúvel e brilhante. Todos são corretos, a culpa é sempre dos outros. E a autocrítica virou marketing. O fator decisivo para a esquerda repetir os erros da direita foi a terceirização do estamento para as empreiteiras e os bancos. O poder passou a ser exercido apenas pelas finanças e não mais pelo jogo democrático, como era a proposta anti-conservadora. A direita então assumiu o papel de vestal inatacável, tal como os opositores antes de colocarem a mão no cofre.

Vendo o documentário THE 50 YEAR ARGUMENT sobre os 50 anos da New York Review of Books, de 2014, dirigido pelo Martin Scorsese, notei que todo o acervo cultural acumulado pela revista não tem mais influência sobre os rumos dos EUA e do resto do mundo. Já teve. Foi pela NYRB que os politicamente corretos descobriram que os vietcongs não eram esses anjinhos pintados pela literatura marxista. Que o racismo é um substrato não visível de posturas da mídia e da massa e acaba definindo julgamentos de crimes. E por ser invisível, a toda hora vem à tona, fazendo estrago, como está acontecendo atualmente.

O documentário mostra como funciona um editor. Não comandamos nada, nós imploramos,diz Robert B. Silvers, que fundou a revista junto com Barbara Epstein. Essa declaração chama a atenção para o equivoco que cometem todos os amadores soberbos, o de que devem meter as patas na edição sem olhar para seus colaboradores. No seu depoimento (tem vários no documentário, um mais importante do que o outro), Joan Didion lembra que o editor a levou a escrever sobre assuntos que não lhe interessavam, como a política interna. E como ele sugeriu mudanças fundamentais nos seus artigos, que melhoraram cem por cento.

No Brasil vimos o estrago que provocou o pensamento a reboque. Primeiro foi o anticomunismo ferrenho, que desaguou no ufanismo mentiroso de 1964. Depois a mitologia da democracia civil, que desaguou em Sarney, Collor e FHC, com a entrega do patrimônio nacional à sanha dos credores. Depois o esquerdismo de resultados, que deu no que deu, quando o país foi saqueado até o osso (é a Justiça quem mostra, cobrem dela).

É uma sinuca de bico: o ódio, a submissão, o impasse, e o pensamento fora de forma na origem de tudo. É hora de os intelectuais trabalharem de verdade. Sem aparelhamentos, com criatividade e coragem.

PRÓXIMO



Nei Duclós

Na solidão nada faz sentido
Nem a epifania, a celebração
de um rito. A mitologia
que se quer completa

Falta o principal, a alma
que pertence ao próximo
A frase que interrompe
Ou a flor da sintonia

Falta uma oração saída
de outra boca. A perfeita
desunião de vidas
em confronto

O passo que dispara
o coração
quando se aproxima


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Augustus Wall Callcott

22 de julho de 2016

CANTO PARA SÉRGIO VIEIRA DE MELLO



APRESENTAÇÃO

Os poemas que compõem este Canto foram escritos sob o impacto do atentado que matou em Bagdá, a 19 de agosto de 2003, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que estava em missão de paz pela ONU, do qual fazia parte como um dos seus mais destacados estadistas.

Cada verso seguiu os passos da agonia, morte e funerais por três continentes daquele que deu o exemplo de competência numa vida de grandes realizações, como a difícil obra de devolver ao Timor Leste seus dias de normalidade política e social.

Quando é grande a perda, e incomensurável o tamanho da dor provocada por esse evento que consolidou uma situação de convulsão permanente no Oriente Médio, acreditamos que a poesia transcende os discursos fúnebres e celebra um cidadão voltado para o bem e focado na importância e seriedade do seu trabalho.

Apesar da crueza do fato abordado, a poesia se permite não apenas gravar na memória o que ele significa, mas servir de contraponto às imposições da barbárie para buscar a sintonia com um futuro menos comprometido com o sofrimento.


Nei Duclós

Autor de mais de 20 livros de poesia, romance, contos, crônicas, História e ensaios.Jornalista desde 1970. Nascido em Uruguaiana, RS, em 1948, mesmo ano em que Sérgio Vieira de Mello veio ao mundo no Rio de Janeiro.

RETORNO - Peça seu exemplar em PDF pelo email neiduclos@gmail.com