Nei Duclós
Uma das minhas cenas favoritas de A Vida de Brian (1979,
TerryJones/ Monthy Pyton ) é a reunião clandestina dos guerrilheiros com os
judeus oprimidos: Vamos expulsar os romanos. O que nos deu o Império Romano?
diz o agitador. A coleta de lixo, diz alguém a plateia. Sim, a coleta de lixo.
Mas só isso, o que mais? As estradas e o policiamento noturno, diz outro. Sim,
sim, mas nada mais que isso. O Direito Romano, diz finalmente mais um.
Longe de justificar a opressão, mas desmascarando quem tenta
jogar fora a água suja do Império junto com o recém-nascido, as conquistas
legais, o filme mostra que civilização é uma árdua construção que merece ser
entendida para que não se renovem os equívocos. Nenhuma ideologia deve servir à
barbárie. Junto com a mudança deve vir o entendimento e também o perdão. Isso
me ocorre ao assistir dois filmes excepcionais lnçados em 2014. Um é Manos Sucias, do
americano com raízes no Japão e na Polônia Josef Kubota Wladyka, que brilhou no
festival alternativo de cinema Sundance e aborda o envolvimento de dois
pescadores no tráfico pesado de drogas. E outro é Difret, dirigido por
Zeresenay Berhane Mehari e produzido por Angelina Jolie, com a jovem Tizita
Hagere (foto) no papel da garota estuprada pelo pretendente cheio de razão, pois
estava amparado na tradição.
Depois desse caso abordado no filme, o sequestro da noiva
virou crime na Etiópia e dá cadeia de cinco anos para quem pretender agir sem
atentar para a nova lei. Mulher assim deixa de fazer parte dos móveis, rebanhos
e utensílios dos homens, graças ao trabalho de uma advogada amparada por uma
Ong que presta auxílio gratuito para as meninas perseguidas. É de arrepiar a
cena em que os lavradores pedem a pena de morte para a menina de 14 anos (uma
idade sob suspeita dos policiais por ser ela desenvolvida), que ao se defender
do crime sexual atirou no sujeito, que acabou morrendo. O ancião da aldeia
decreta uma indenização à família do morto e o exílio da mulher que atirou em
legitima defesa, arrancando urros de indignação de quem defendia a pena de
morte..
Na Etiópia, o idioma oficial é o amárico, uma língua
semítica com cerca de 26 milhões de falantes nativos. Não se deve confundir com
o aramaico, falado em partes do Oriente Médio , embora ambas sejam línguas de
origem semítica.A palavra em amárico do título do filme, "difret" tem
um duplo significado. Em seu uso mais amplo significa coragem e a tradução em
Inglês mais próximo aponta para o verbo "ousar". Mas, em amárico, ele
também tem um-duplo sentido que significa "o ato de ser estuprada".Nessa
confluência de significados, somos transportados para a sinuca de bico deste
caso em que o direito romano, com testemunhas, júri, juiz, sentenças, se impõe
sobre os hábitos e certezas milenares.
No outro lado do mundo, mas sintonizado no mesmo diapasão do
terror social, Manos Sucias foi feito graças a uma bolsa fornecida pela
instituição fundada pelo Spike Lee. Aborda a lei do cão na selva colombiana,
onde a favela fornece mão de obra barata para os chefões do tráfico. A
sequência de perseguição e fuga em motonetas sobre trilhos é de nos arrancar da
cadeira. Os moços pescadores são levados ao crime brutal com armas de fogo e
com as próprias mãos para poder fazer a entrega de um grande carregamento, que
é acoplado ao seu barco com um cabo, para despistar a polícia. A inocência dos
protagonistas que se enlameiam na culpa dos assassinatos, sendo eles próprios
vítimas dessa situação (um deles perdeu um filho com um tiro na cabeça)
contrasta com o clima de um ambiente em que a natureza adquire tons sinistros,
contaminada pela maldade humana.
Dois tremendos filmes. O colombiano no Netflix e o etíope no
Telecine Cult. Cinema é o que pega.
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