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26 de março de 2016

E LA NAVE VA: O SOLENE RISO DO GÊNIO



Nei Duclós 

E La Nave Va, de Federico Fellini, é um longo funeral turístico e marítimo da ópera: ao mesmo tempo que celebra a era de ouro do bel canto, decreta seu fim, por meio da entrega das cinzas de uma grande intérprete ao mar. A cerimônia é promovida por povos irmanados pela arte ( o nobre austríaco e sua entourage convivendo com toda a fauna italiana dos palcos) que acabam se confrontando e se dividindo para sempre com o início da I Grande Guerra.

A narrativa fica a cargo de um jornalista, que fala direto para a câmara e no desfecho do filme é revelado em toda a sua representação, com o surgimento na tela da equipe que faz o filme. O cenário é de uma grande produção operística vista em seus bastidores, com a presença do pedófilo, do homossexual, da ninfomaníaca, do traidor do príncipe, da cantora invejosa da fama da homenageada etc. Como diz uma personagem, quem interpeta não sabe de onde vem a voz. Cantores são apenas instrumentos, com a respiração, a garganta, o timbre.

Os artistas notam que não estão sós no clima aristocrático do navio de luxo, pois o capitão recolheu náufragos sérvios foragidos da guerra, cumprindo assim os ditames do Código Naval, de prestar socorro aos que estão á deriva em alto mar. O gesto humanitário é visto com desconfiança pela nobreza austríaca a bordo, mas os italianos acabam se misturando à arte popular trazida por acrobatas e dançarinas existentes entre os imigrantes. A Itália não é de confiança, dizem os buldogues e isso diverte Fellini, um pândego de gênio, que focou toda sua obra na indústria do espetáculo. A representação artística, da qual o cinema é mais do que a soma de todas as artes, mas também sua transcendência, seu rebento original. ocupa Fellini na exposição do mistério exibido pelo talento.

E La Nave Va, ou seja, o show deve continuar, como dizem os americanos. Fellini coloca uma situação terminal da ópera, que morre junto com a civilização dos tempos de paz e dali em diante vive da memória, pois essa arte estacionou no tempo e é sempre revisitada sucessivamente por todos os séculos. Foi a guerra que colocou um ponto final. Dali em diante não se podia mais chegar á altura do que se produziu anteriormente. Mas isso não chega a ser uma tragédia, é mais um drama com lances de comicidade.

Fellini nao iria conspurcar sua obra com a falsa seriedade dos medíocres. O gênio ri, enquanto chega, por sua vez, ao épice de sua arte, como o que consegue mostrar em relação às outras, inclusive ao próprio cinema (como em 8 e meio). Vale-se da memória, que é a História contada pelos avós às crianças. E do vento, solene, permanente, que está em Amarcord e tantos outros filmes seus, e que se refere sempre ao fluxo do Tempo, cíclico, eterno e ao mesmo tempo provisório, passageiro, humano.


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