Nei Duclós
Quando no futuro quiserem saber como somos agora, os filmes
dos irmãos Dardenne serão a referência principal. Sem eles, os vestígios da nossa época ficarão
restritos a fortões e detonadoras em carros furiosos e velozes destruindo tudo.
Em Dois dias, uma noite (2014, indicado para a Palma de Ouro em Cannes em 2015),
Jean-Pierre e Luc mostram os obstáculos que se interpõem na vida de uma
trabalhadora que batalha para resgatar a solidariedade dos colegas para manter o emprego. O
prêmio para sua demissão é um abono de mil euros, que ninguém quer abrir mão.
Demitida por ser considerada sem condições de trabalhar depois de ter passado
quatro meses em profunda depressão, ela tem uma chance: o voto majoritário dos
colegas a levariam para a reintegração na empresa.
A cãmara acompanha a pesada trajetória da desempregada
durante um fim de semana na véspera da votação. Ela precisa subir escadas em
prédio sem luz, falar com parentes desconfiados e hostis,descobrir onde cada um
mora, ir até o local onde se encontram, tanto numa lavanderia quanto num campo
de futebol. A cidade assim, dominada pelos carros, se mostra inóspita,
desértica, triste, pressionando fisicamente a atriz Marion Cotillard (que
ganhou um Oscar interpretando Edith Piaf), jogando-a num novo redemoinho
depressivo, que as pílulas não conseguem resolver. Ela se entope dessa medicina
perigosa até explodir seus limites, pois no caminho perde a esperança de
conseguir os votos necessários.
Os Dardenne dão uma aula de cinema, como sempre. A andança
em busca da solidariedade revela-se na penúria não apenas econômica, mas
psicológica. A solidão impera diante da brutalização do trabalho, com a família
se desintegrando no apartamento montado, mas precário,com o marido que não mais
a ama e sente piedade por sua situação. Seu esforço entretanto arranca mudanças
de comportamento dos renitentes trabalhadores de olho no bônus. Um chega a
chorar de arrependimento, pois numa primeira votação a tinha rejeitado, apesar
de reconhecer o quanto ela foi solidária com ele, assumindo culpas que poderiam
ter sido motivo de demissão. É candente esse rodízio de declarações secas e
contundentes, que se esgarçam diante da determinação da mulher em busca da
dignidade de um salário.
É um filme de estrada, feito a pé (apesar das cenas dentro
de automóveis), nos caminhos tortuosos em subúrbios vazios, em portas fechadas
a ferro, em famílias furiosas com sua presença, pois ela significa perda de
dinheiro. Mas há brechas. As crianças que apontamos lugares onde os pais estão
são um sinal de esperança no mundo que cerrou os dentes diante da crise. Um
filme focado o tempo todo em primeiro plano no rosto sofrido da protagonista,
mas com um entorno significativo da sociedade que funciona na base da
indiferença e da máquina. A robotização dos sentimentos, o desespero sem
consolo e os raros lances de esperança que abrem sóis nesse veludo espesso.
Uma aula de cinema que os irmãos Dardenne, como aprendizes
de uma arte em movimento, se transformam nos novos mestres num cenário de
desolação que é a indústria cinematográfica atual.
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