O que diz um filósofo importante sobre um dos seus pares?
Miguel Lobato Duclós (1978-2015) nos explica, em mais um texto de sua generosa lavra.
“RESUMO DE ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL:
BATAILLE”
Capítulo do Discurso
Filosófico da Modernidade de Jürgen Habermas.
MIGUEL DUCLÓS
“Neste capítulo Habermas tentará mostrar o pensamento de
Bataille sob três prismas principais: a formação dos conceitos de heterogêneo -
que levará a uma filosofia da heterologia, uma despedida da modernidade em uma
filosofia da história e uma abordagem da economia geral, com a qual Bataille
esperava responder à questão: como transformar a reificação (num sentido
marxista) em heterelogia.
Habermas tece ao longo de todo o capítulo uma série de
aproximações e diferenciações entre Bataille e outros pensadores. Com
Heidegger, trata da questão da despedida da modernidade e da crítica da
metafísica. Com Horkheimer e Adorno, da questão da análise psicológica do fascismo
como manifestações de massa homogênea e com Lukács, Marx e Weber, da questão do
trabalha capitalista que resulta em fetichismo, alienação e reificação.
À primeira vista, as diferenças entre Heidegger e Bataille
são mais fáceis de enxergar do que as semelhanças. Porém Bataille participou do
movimento surrealista, introduzido por André Breton, da militância radical de
esquerda, prosseguidor da literatura "maldita" de Marquês de Sade,
descrito por Foucault como "o homem do impossível".
Bataille têm uma biografia, orientação política maneira de
filosofar muito diferente de Heidegger. O projeto comum dos dois, entretanto,
aparece junto com a herança nietzscheana para a filosofia do século XX - já que
Bataille é peça-chave da chamada "recepção francesa" do filósofo
alemão. Bataille busca a fuga do "cativeiro da modernidade, do universo
fechado da razão ocidental, vitoriosa na história mundial. Ambos querem superar
o subjetivismo que cobre o mundo com sua violência reificante, cristalizando-o
em uma totalidade de objetos tecnicamente controláveis e economicamente
aproveitáveis" (pg. 249).
A coincidência e o empenho dos dois em tal projeto é tanta
que Habermas, citando um trecho de Foucault sobre a superação dos limites em
Bataille, afirma que este pode ser lido como tratando da noção de
transcendência de Heidegger, sem que no entanto se perca o sentido.
Bataille ataca a razão pela via weberiana de uma
racionalização ética que possibilita o sistema econômico capitalista. O início
da modernidade não é a autoridade de uma consciência de si dilatada, como no
cogito cartesiano, mas a orientação para o êxito de uma ação que serve à
realização de finalidades subjetivas.
Heidegger direciona sua crítica aos fundamentos da
subjetividade, enquanto Bataille pretende acabar com os limites desta.
Heidegger pretende destronar o sujeito em favor de um destino
superfundamentalista do ser, ao passo que Bataille pretende tirar o sujeito dos
limites de seu casulo, para um contexto de vida desfamiliar, estranho, e para
uma transgressão que o liberte em direção à sua verdadeira soberania, com a
espontaneidade livre de seus impulsos até então proscritos.
A soberania de Bataille aproxima-se do conceito nietzscheano
de liberdade, da vontade de poder que se intensifica a si própria, com a auto-afirmação
do super-homem, que é autor de seus próprios valores. Estes conceitos voltam-se
contra qualquer tipo de autoridade, principalmente contra a autoridade do
divino e do sagrado.
Bataille pensa a morte de Deus de um ponto de vista
rigorosamente ateu, enquanto Heidegger nega Deus como omitido, mas mantém o
acontecimento da revelação. Bataille não tem a ilusão de que na modernidade
haja algo ainda a profanar, nem que a filosofia tem de criar alguma compensação
pela mística do ser. Mas defende uma proganação vazia, sem desejo, voltada
apenas para si.
Em seguida Habermas explica a análise psicológica de
Bataille acerca do fascismo, feita sob a luz dos elementos homogêneos e
heterogêneos da sociedade. O conceito de heterogêneo aparece pela primeira vez
numa revista Documents, editada por Bataille, Michel Leiris e Carl Einstein
após um racha do grupo surrealista no final dos anos 1920. O heterogêneo
aparece como todas as formas de vida que escapam à assimilação das formas de
vida burguesa e dos hábitos do cotidiano. A vivência dos surrealistas é neste
sentido heterogênea, pois fogem em suas obras de arte ou livros, da sobriedade
e normas sociais em direção à embriaguez, ao êxtase dionisíaco, às paixões, às
influências do inconsciente da psicanálise. O heterogêno aparece nesses
instantes que o sujeito escapa dos grilhões da normalidade e repetição de
hábitos para um estado de estranhamento consigo mesmo e com o mundo. Bataille
entende a heterogenia como constante nos proscritos em geral: os loucos, as
prostitutas, os agitadores, revolucionários, poetas, boêmios e outros segmentos
marginalizados.
É neste segundo sentido que Bataille atribui aos líderes
fascistas - Hitler e Mussolini, uma existência heterogênea. Bem antes da
explosão da Segunda Guerra em 1938, durante a ascensão e consolidação de Hitler
no poder e a marcha sobre Roma de Mussolini, Bataille publica um ensaio chamado
"A estrutura psicológica do fascismo". O ano, 1933, é o mesmo em que
Heidegger publica seu ensaio de exaltação ao Führer, que Habermas trata em
outro capítulo. A tomada de poder por parte dos fascistas foi motivo de
indignação e fascínio, mas nunca de indiferença. Habermas afirma que nenhuma
teoria da sensibilidade deixou de ser afetada por ela, e cita, além de Bataille
e Heidegger, a teoria crítica de Adorno e Horkheimer. Bataille, no ensaio,
busca nas causas do fascismo os aspectos psicológicos, e não somente econômicos
e estruturais. O fenômeno que mais interessa a Bataille no fascismo são os
rituais de mobilização de massas antes enervadas em torno da figura carismática
do Führer. Na figura deste estariam condensados o poder religioso e o militar.
Hitler nas primeiras décadas do século viveu de forma
marginal, proscrita, na Áustria e alimentou-se durante dois anos com a sopa dos
pobres da cidade, dormindo na rua. Hitler aparece como uma alternativa
heterogêna: o inteiramente outro da democracia de massas orientadas por
interesses do homogêneo da vida cotidiana, do metabolismo com a natureza e o
exterior, que no capitalismo determinara-se como o trabalho medido
abstratamente em tempo e dinheiro. Este mundo racionalizado e homogeneizado é
entediante e não encontra em si mesmo forças para reproduzir-se. A incapacidade
de encontrar em si uma razão de ser o coloca na dependência que ele exclui. Os
elementos homogêneos excluem e estabilizam os limites que só podem ser rompidos
pela violência. É neste contexto que irrompe a figura dos líderes fascistas e
das massas em transe. Os elementos heterogêneos no estado fascista mesclam-se
com perfeição aos elementos homogêneos de disciplina, amor à ordem e unidade de
sangue.
Horkheimer e Adorno também pensaram o fascismo em termos
psicológicos, destacando que o fascismo empregou a seu favor comportamentos
eliminados pela civilização, como o comportamento mimético - um modelo secular
de reação. A diferença entre Bataille e Adorno & Horkheimer aparece na
forma cmo são determinadas as partes proscritas da subjetividade. Para
Horkheimer & Adorno o comportamento mimético leva à uma felicidade sem poder,
ao passo que para Bataille é impossível pensar a felicidade sem violência, pois
estas estão unidas no heterogêneo. Essa violência, como superação de limites,
existe tanto no erótico como no sagrado.
Os atos revolucionários que fundam posteriormente o direito
são extremamente violentos. Para Benjamin, a violência é transcendida através
da intersubjetividade e do acordo mediado pela linguagem. Bataille se interessa
no fascismo com a política estetizada, poetizada, libre de qualquer esfera
moral Mas ressente-se da falta de um ponto de referência, como o benjaminiano,
que permita a superação da violência. Assim Bataille vê-se frente à questão em
que as manifestações espontâneas e subversivas se diferenciam de canalização
fascista.
Essa análise do fascismo vai levar Bataille a propôr uma
ciência hetereológica (pg. 311) que permita prever as reações afetivas e
sociais que percorrem a super-estrutura e que permita, talvez até certo ponto,
a dispôr livremente delas…. O saber sistemático dos movimentos sociais de
atração e repulsa apresenta-se simplesmente como uma arma em um movimento que
não se opõe ao comunismo, mas antes às formas imperativas e radicais de
homegeneidade.
Na parte III do capítulo, Habermas trata da filosofia da
história de Bataille. Esta foi estabelecida, segundo ele, de forma maniqueísta.
Bataille, como comenta, empregava figuras de pensamento típicas do marxismo,
mas distancia-se da filosofia da práxis em uma outra direção no tratamento da
questão do trabalho e da atividade humana. Nega que o atendimento das
necessidades básicas da vida seja a razão pela qual se produz. Vê no próprio
consumo um conflito entre a reprodução da força de trabalho e o consumo de um
luxo que ultrapassa em muito as necessidades vitais e os ditames do
metabolismo.
Bataille concebe uma forma de consumo diferente da habitual,
que reprime a soberania através da produção e reprodução. Identifica este novo
consumo com as formas de auto-renúncia, delírio, e auto-ilusão. Além desse
consumo necessário à consumação da vida, deve haver também os dispêndios
improdutivos, como a guerra, o luxo, os cultos e construtos monumentais, a
sexualidade desligada de finalidade genital.
Essa primeira forma de trabalho acontece no sistema
capitalista, onde todo o excedente é gasto novamente em produção. Mesmo os
ricos não expõe o seu luxo publicamente, mas atrás de muros segundo convenções
entediantes e deprimentes.
Esse tipo de consumo é típico de uma razão reificante que
surge do trabalho social, e à qual opõe-se a soberania (pg. 314): "Ser
soberano significa não se deixar reduzir, como no trabalho, ao estado de uma
coisa, mas desenvolver a subjetividade". A soberania reside no consumo do
inútil, mas agradável.
A soberania do sujeito é condenada e excluída por um
processo de desencantamento e coisificação que existe no trabalho alienado da
sociedade capitalista de consumo. A sociedade capitalista é uma sociedade de
coisa, e não de pessoas, onde o objeto vale mais do que o sujeito, e este
torna-se dependente daquele. Mas não apenas de coisas, já que surge da
dominação da razão calculante, anterior ao capitalismo, e projeta-se para além
deste no socialismo democrático.
Apesar das semelhanças com Lukács e com a Teoria Crítica,
Bataille mais uma vez distancia-se deles porque tem em mente uma filosofia da
história da proscrição, de exterritorialização do sagrado, expondo o destino
histórico e universal da soberania.
A soberania humana é recuperada nos instantes de êxtase, mas
remonta à uma unidade primordial do homem com a natureza. Esta unidade perdida,
tratada por inúmeros filósofos, é buscada sempre: toda forma de sacrifício e de
religião é uma tentativa de retomá-la, voltando à junção com o seio divino da
natureza. Esta perda é descrita no mito bíblico do Gênesis, com a expulsão do
paraíso de Adão e da companheira Eva após o pecado original. Depois da queda,
Deus diz ao homem que este garantirá seu sustento com o trabalho, com o suor de
seu rosto. Nos Trabalhos e os Dias de Hesíodo o trabalho também surge como uma
maldição divina Zeus expulsa Prometeu das moradas celestes, após este dar o
fogo, o lampejo ao homem (associado ao semítico pecado original). "A
introdução do trabalho substituiu, de imediato, a intimidade, a profundidade do
desejo e seu livre desencadeamento, pelo encadeamento racional em que a verdade
do instante não mais importa, mas sim o resultado final das operações; o
primeiro trabalho funda o mundo das coisas… A partir da posição do mundo das
coisas, o próprio homem torna-se uma das coisas desse mundo, pelo menos
enquanto trabalha. A essa desgraça o homem de todos os tempos tenta
escapar". (pg 317).
A soberania surge na história nas figuras que contém uma
força diferenciadora, como a categoria social do dominador, nos poderes sacros
dos sacerdotes, no poder militar dos nobres e na figura do rei absolutista e
sua corte. A soberania supõe uma independência do sujeito em relação às coisa,
tal qual uma pessoa sagrada típica das sociedades arcaicas. Na sociedade
burguesa, a soberania desaparece por completo, na medida em que a posição
social depende apenas da posse de coisas.
Há uma ligação entre soberania e poder que aparece em todas
as forças históricas de dominação, e que no regime soviético não existe. A
eliminação dos atributos religiosos da soberania de certa forma objetiva o
poder, que é definido em termos exclusivamente funcionais, pelo desenvolvimento
das forças produtivas. O sistema soviético não dá espaço para a soberania, pois
a organização social é definidade de modo igualitário e com o objetivo
sócio-político de industrialização materialista. Existe uma dicotomia entre a
reificação e a soberania, que deve terminar numa separação das esferas: a
homogênea e a heterogênea. A soberania é concebida, então, como o outro da
razão.
Bataille parte da explicação weberiana de capitalismo, que é
sustentada pelos estudos sobre a ética religiosa, e recua o capitalismo até
suas origens nas regulamentações morais das pulsões, anterior a qualquer forma
de soberania e exploração. Habermas resume o argumento de Bataille em três
passos:
1º) Os homens saem da vida animal e passam a se distinguir
destes através da proibição e da regulamentação de suas pulsões, e não apenas
através do trabalho. O Gênesis conta que assim que Adão e Eva experimentaram do
fruto proibido, conheceram que estavam nús. E também tiveram consciência de sua
morte. A morte e a procriação aparecem intrinsicamente ligados, estando na
origem de todos os tabus, e representando duas formas de excesso que
transcendem os limites do ser individualizado. Os rituais e normas mais antigos
aparecem como um dique contra o redemoinho de nascimento e morte de uma
natureza que devora as existências individualizadas. Nesse aspecto, não há
diferenciação entre nascimento e morte, pois ambos são apenas "os momentos
culminantes de uma festa que a natureza celebra com uma multidão inesgotável de
seres. Ambas significam um desperdício alimentado que a natureza opera contra o
desejo profundo de durar que é próprio de cada ser" (pág. 324).
2º) O segundo argumento de Bataille diz que essas proibições
e normas não devem ser tomadas apenas do ponto de vista do sistema de trabalho
social. Elas remetem à alguma instância sagrada que provoca ao mesmo tempo
horror e encanto, angústria e felicidade. Bataille fala da irmanação entre lei
e transgressão: a validade das normas se funda na experiência da transgressão
proibida. O trabalho racional é organizado por leis que não são somente
racionais, mas que têm uma força de fascínio pelo sagrado.
3º) O terceiro argumento de Bataille é uma crítica da moral,
baseada na sociologia weberiana da religião. O desenvolvimento religioso é
visto como uma racionalização ética, o sentimento do sagrado causa encanto e
pavor, mas é domesticado e cindido, perdendo assim sua ambigüidade.
A crítica não se dirige à moral em si, mas à racionalização
das imagens religiosas do mundo, e portanto seu congelamento. Estes se afastam
a soberania de suas fontes borbulhantes de excesso e poder.
Por fim, Habermas apresenta o projeto de Bataille para uma
economia geral. A economia tradicional apresenta o aproveitamente de recurso
escassos na reprodução da vida social. Bataille contrapõe à essa o dispêndio
desinteressado dos recursos abundantes, o dispêndio improdutivo da energia
transcendente.
Esse desperdício pode ser canalizado de forma gloriosa ou
catastrófica. Pode-se escapar momentaneamente do ciclo inexorável de
nascimento, reprodução e morte, com a volta da soberania e a exaltação ou
elevação da vida. Ou desaguar em imperialismo, guerras mundiais, contaminação
ecológica e destruição atômica. Habermas, como de praxe, após fazer sua
exposição do pensamento do filósofo tratado, aponta suas discordâncias, os
excessos, equívocos e os desvios daqueles que buscaram superar o projeto da
modernidade, que pretende resgatar.”
Miguel Lobato Duclós (1978-2015). Leia também no link
http://www.consciencia.org/entre-erotismo-e-economia-geral-georges-bataille
BIBLIOGRAFIA
HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade. Tradução de
Luiz Sérgio Repa Martins Fontes, São Paulo, 2000.
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