O que dizem os grandes pensadores sobre a religião? Ou
melhor, sobre a contradição humana de viver entre origem e destino, miséria e
redenção? Miguel Lobato Duclós (1978-2015) pega firme Pascal para entender o que o filósofo dizia sobre
esse assunto. Mais uma viagem do futuro livro que estamos preparando do filósofo que nos deixou cedo demais e permanecerá conosco eternamente com sua
limpidez e sua grandeza. Que nos faz falta sempre, especialmente nesta manhã
clara, a primeira em muitas semanas nesta ilha onde repousa o filho amado.
“BLAISE PASCAL : A MISÉRIA DA CONDIÇÃO HUMANA E A SOLUÇÃO
RELIGIOSA”
POR MIGUEL DUCLÓS
Trabalho Originalmente apresentado para a profª Scarlett
Marton – FFLCH -USP
Desenvolvimento do tema:
PENSAMENTO 383 – BLAISE PASCAL . “Os que vivem no desregramento
dizem aos que vivem na ordem que são estes que se afastam da natureza, e julgam
segui-la: como os que estão num barco julgam que os que estão na margem fogem.
A linguagem é semelhante em toda parte. É preciso ter um ponto fixo para
julgar. O porto julga os que estão no barco, mas onde conseguir um porto na
moral?”
“ A existência humana nesta terra, para Pascal, é paradoxal.
Paradoxal porque muda de condição e de qualidade se colocada em relação com
dois extremos opostos. Existe um dualismo presente em todas as coisas. São os
aspectos contrários entre, por exemplo, quente-frio, devagar-depressa,
noite-dia, que nos levam à visão de uma natureza cindida, da existência de uma
contradição primordial. A busca pela superação desta contradição nos levou a formular
uma série de teorias, que quando aceitas, nos trazem de volta ao bem estar e ao
terreno seguro e constante do Ser.
Não nos é mais cômodo aceitar a filosofia bem resolvida do
Ser platônico do que o mundo em transição, exposto de forma obscura por Heráclito
de Éfeso? O homem sempre igual a si mesmo não é superior, segundo a tradição,
do que o homem como medida, que perante o devir pode tanto ser como não ser?
Nos pensamentos de Pascal, a condição humana é colocada em
relação: ele tanto pode ser como não ser. O tema de dois extremos opostos
aparece em várias passagens dos Pensamentos, mas é a de número 72 que Pascal,
analisando a desproporção do homem, dirá: “o homem é nada em relação ao
infinito, tudo em relação ao nada”. À primeira vista, esta proposição pode
parecer ir contra a tradição filosófica ocidental, que diz que o ser não pode
existir juntamente com o não-ser, ou o que o ser pode ao mesmo tempo ser nada.
Mas, se vista à luz do resto dos Pensamentos, ou da conversão religiosa de
Pascal depois de um acidente, ela demonstra ter um caráter brilhante. Em
primeiro lugar, devemos ter presente a definição de condição humana, o ataque
violento empreendido por Pascal à arrogância e vaidade humanas. Para Pascal, o
homem é este ponto intermediário entre o tudo e o nada -, ponto este não
linear, mas pertencente à estrutura interna, psicológica do homem, vivendo em
meio a estrutura maior do universo. Para Pascal, é impossível ao homem conhecer
a verdade, pois esta exige o conhecimento dos dois extremos.
O ser humano não percebe que é um animal deslocado perante a
imensidão da natureza, e esta não lhe é concedido conhecê-la nem de maneira
mais vaga. O homem está deslocado justamente por causa do seu odiável e tirano
eu, que de forma irreal, se coloca como o centro do mundo, para poder construir
o mundo perceptivo e social visto através de sua perspectiva. O eu não é em si,
mas algo criado. Em Pascal existe uma distinção entre o eu e o amor próprio. A
comunidade reprime o amor próprio, os impulsos e a vontade, e este pretende-se
o centro, pretende sujeitar os outros a si. Ao fazer-se centro eu procura
destruir todos os outros eus, que são tomados como seus inimigos. O eu é uma
declaração de guerra de um homem separado da natureza.
Ao contrário do homem, o animal ou a árvore não estão
extraviados da natureza, eles não se sabem no mundo, não pensam de forma a se
desprender da natureza: eles apenas são no seio dela. É do amor próprio e do eu
amar apenas a si, como diz Pascal no pensamento 100, mas o homem e o seu eu não
pode deixar de se perceber como um ser imperfeito, que “quer ser grande mas
acha-se pequeno, quer ser feliz e acha-se miserável.” Para manter seu amor ao
eu, o homem tem de inventar inúmeros mentiras e disfarces. O caráter intrínseco
do eu e da personalidade humana, é, portanto, hipocrisia e enganação.
O tema do eu na filosofia ganha tratamento específico a
partir de Descartes. Pascal conhecia Descartes pessoalmente desde pequeno,
quando frequentava um círculo de sábios da época mediante seu pai. Porém, no
desenvolvimento do seu próprio pensamento filosófico, e especialmente depois de
sua conversão ao cristianismo, Pascal se põe numa posição francamente contrária
à orientação racionalista dada por Descartes. É no pensamento 72, que ele
declara abertamente: “Descartes: inútil e incerto”. Pascal julga pretensioso o
projeto que Descartes concebeu num insight, numa noite de inverno, de dar os
alicerces da construção de uma ciência universal. Pascal não pode perdoar
Descartes, que através de sua dúvida metódica, reduziu o mundo a uma dimensão
quase solipsista, até chegar à primeira verdade: o eu é uma coisa que pensa.
Pascal condena tanto o uso de Deus em Descartes – que serviria “apenas” para
objetivar o mundo -, quanto o eu apenas racional, puro pensamento. Descartes,
diz Pascal, bem poderia passar sem Deus, mas usou-o somente quando precisou
Dele para que se resolvesse a dicotomia sujeito-objeto, ao fim do quê, jogou-o
fora novamente. Para Descartes, Deus era um ser bondoso, mas apesar disso não
se pode deixar de notar que um cristão tente a ver com desconfiança a suspeita
de Descartes contra um possível Deus Enganador.
Embora Pascal releve importância fundamental ao pensamento,
seu eu está bem longe da concepção de cogito cartesiano, que é a condição primeira
para a existência, e portanto do saber humano (no que diz respeito ao contexto
específico das meditações empreendidas pelo pensador). O homem garante este
primeiro saber na medida em que o cogito é garantido verdade toda vez que
pronunciado em seu espírito. Talvez um ponto que aproxime Descartes e Pascal é
a busca de um ponto fixo, de maneiras diversas.
Em Descartes, o ponto fixo é a busca desta verdade primeira,
sob a qual se pode erguer o edifício das ciências, que resultou no cogito. Em
Pascal, como explica no pensamento 383, o ponto fixo está ligado à busca de
princípios morais fixos, uma vez que o eu está sempre em movimento, as paixões
do homem o levam a ver as coisas de diferentes formas, e a própria condição
humana o leva a aceitar a verdade mesclada com falsidade. A natureza do homem é
movimento, fluxo, só os mortos permanecem em repouso. E como achar, diz Pascal,
“um ponto fixo para julgar, O porto permite julgar o movimento dos questão no
barco, mas como achar um porto na moral?”
O tema do ponto fixo aparece na época renascentista e
moderna em diversas áreas do saber humano quando a situação confortável do
homem no mundo cai. Como o eu de Pascal, e talvez por causa dele, a Terra
ocupava, segundo os dogmas cristãos, a privilegiada posição de centro do
universo. Também na física aristotélico-tomista, o geocentrismo prevalecia, e
havia a noção do universo como cosmos, ou seja, um mundo finito e ordenado.
Embora filósofos como Aristarco de Samos e Nicolau da Cusa tivessem defendido o
heliocentrismo, foi somente a partir da infinitização herética de Giordano
Bruno e do tratado das revoluções celestes de Copérnico (cujo tema foi
desenvolvido depois por Galileu), que estas noções milenares vieram a cair.
Isto viria a constituir, no dizer de Freud, a primeira ferida egocêntrica da
humanidade. Este fator e outros, como o salto tecnológico, comercial, urbano e
científico, a noção de invidualidade medieval não era mais adequada.
Praticamente, a noção de eu enquanto sujeito não existia na Idade Média, o
homem estava sujeito à coletividade.
Perdendo sua posição privilegiada, de senhor do mundo e do
universo, feito a imagem e semelhança de Deus, o homem se vê sozinho e
desamparado sob o universo infinito, que por ser infinito passar a ser também
incerto, sem verdades absolutamente válidas. Se para Descartes o cogito é como
a alavanca de Arquimedes que permite mover o mundo, para Pascal o ponto fixo é
um ponto de vista que adequado para refletir sobre a verdade e o mundo. É um
ponto que lhe permite refletir sobre sua situação paradoxal, e um ponto de
equilíbrio entre os dois extremos.
Qualquer movimento em direção a um dos contrário, é um
movimento perigoso, que afasta do outro. Logo, a questão do equilíbrio passa a
ser crucial. Este ponto de equilíbrio não é intermediário, mas sim o princípio
de alheamento que proporciona a conciliação entre os dois extremos; mesmo sem
eles deixarem de existir, o ponto de equilíbrio oferece a posição necessária
para o homem refletir sobre sua condição a partir de seu próprio conflito.
Este ponto é dado pela religião, quando o homem reconhece
sua miséria, e por isso torna-se grande. Admitindo Deus e Jesus Cristo como o
centro e a razão de todas as coisas, o homem encontra consolo e repouso para
sua alma. Somente em Deus os dois extremos se unem, convergem, como num
círculo. Porém, para conhecer Deus, o homem deve primeiro saber-se nada.
Sabendo-se nada, torna-se tudo. É este o segredo que o fino moralismo de Pascal
guarda, o de que, ao livrar-se de sua máscara que a arrogância, o amor e o ódio
ao eu produzem, o homem consegue achar uma solução para a tensão entre os dois
contrários. Mas Deus não é conhecido pela razão. O espírito geométrico não
ocupa a totalidade do espírito, o sentimento, com efeito, é mais presente do
que o raciocínio. É por uma faculdade específica humana, um tipo de
inteligência imediata e intuitiva, chamada coração (no conceito pascalino), que
é permitido ao homem a compreensão de que Deus existe e das verdades reveladas.
O coração, diz Pascal, tem razões que a própria razão desconhece, e é ele quem
permite perceber a conciliação entre os dois infinitos: a de que Jesus é o
mediador entre o finito e o infinito. Pascal aponta a debilidade da razão:
mesmo na geometria, o axioma é uma verdade intuitiva, e indemonstrável, ou
seja, tão clara que é o coração que a conhece.
Assim, está na religião, pelo menos o consolo para a verdade
de que o homem, ser transitório, não passa de folha ao vento. barco navegando
sem rumo pela imensidão do mundo, julgando ser verdade que é o mundo relativo a
ele, e não ele em relativo ao mundo, criando seu próprio centro com o auxílio
frágil do eu e da razão, um sendo uma mentira, a outra, frágil demais para
conhecer a verdade. Ou como nos conta Pascal:
“O maior filósofo do mundo, sobre uma tábua, por mais larga
que seja, se houver embaixo um precipício, embora a razão o convença de sua
segurança, a imaginação prevalecerá. Muitos sequer poderiam pensar nisso sem
empalidecer e suas (…) . Quem não sabe que a visão dos gatos e dos ratos, o
esmagamento de um carvão põe a razão fora dos eixos?”
A religião, através da igreja e da vidã cristã, proporciona
a fusão entre sujeito e objeto. A relação com Cristo dissolve o Eu. No
pensamento 336 Pascal nos lembra que a conduta moral deve sempre lembrar do
dever de conduzir bem o pensamento, atingindo um pensamento oculto. Isto
significa que a verdade é complexa, feita de elementos múltiplos e
discordantes. Nunca devemos nos esquecer desta verdade. Na moral de Pascal,
existe, devido à esse caráter complexo, uma procura de uma prática da anatomia
moral, que busca o funcionamento secreto das paixões.”
Miguel Lobato Duclós, leia também no link
http://www.consciencia.org/pascal.shtml
BIBLIOGRAFIA
1. Descartes, René. Descartes . Volume da coleção Os
Pensadores, vários livros. Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996.
2. Lebrun, Gérard. Pascal Coleção Encanto Radical. Editora
Brasiliense, São Paulo.
3. Marton, Scarlett. “Pascal: a busca do ponto fixo e a
prática do anatomia moral”, in Revista Discurso nº 24. Discurso Editoral, São
Paulo, 1994.
4. Pascal, Blaise. Pensamentos in Os Pensadores, volume XVI,
editora Abril Cultural. São Paulo, 1973.
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