Aos 22 anos, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) já era um sucesso entre os aficionados
da filosofia, leigos ou acadêmicos. Seu megasite Consciencia.org tinha evoluído
de textos básicos sobre grandes filósofos para um espaço virtual de intensa
diversidade, que abrigava pensadores clássicos e contemporâneos. Com 35 mil
visitas únicas por dia nesta época (ano 2000) Miguel acabou sendo descoberto
pela grande imprensa e deu uma entrevista para Luiz Chagas, sub-editor de
Cultura da revista ISTOÉ. Seu depoimento
está aqui na íntegra, um testemunho valioso sobre a formação de um filósofo no
Brasil na virada do século.
Como sempre, Miguel se coloca de maneira sincera e clara,
com a contundência de quem escolheu seu caminho e compõe uma obra que chegou ao
esplendor. Vale a pena acompanhar sua trajetória desde os 14 anos, quando
começou a ler sobre filosofia, até chegar à complexidade acadêmica, onde
extrapolou para um trabalho autoral, que está sendo reunido para um futuro
livro.
Miguel Lobato Duclós, presente!
ENTREVISTA DE MIGUEL À REVISTA ISTOÉ
“Agradeço à revista pelo espaço cedido na matéria
"Penso, Logo Existo", da edição de 11/11/2000”
E-MAIL de Luiz Chagas, sub-editor de Cultura da revista
ISTOÉ
Oi Miguel, Soube da página pelo Carlos Drummond, nosso
redator-chefe. Comecei fazendo uma matéria sobre livros de Filosofia para
iniciantes e acabei me defrontando com Centro Brasileiro de Filosofia para
Crianças, sua HP, etc. Fundamentalmente o que eu queria saber de você, além da
sua história pessoal, o que o levou a construir esse site, e sua visão sobre o
interesse que a Filosofia está despertando nas pessoas ultimamente. Se isso
está ocorrendo mesmo e o porquê.
Resposta de Miguel
Prezado Luiz
"Sempre gostei de ler desde criança, e lá pelos 14 anos
comecei a me interessar por uma literatura mais séria, como Herman Hesse,
Huxley, George Orwell, lendo os principais livros destes autores. Com 16 anos
me interessei por Nietzsche, e apesar de não ter entendido muita coisa fiquei
realmente impressionado com o estilo e a força do texto desse autor. Isso
serviu, então como porta para estudar filosofia. No início tinha um interesse
maior pela parte mística da filosofia, influenciado por Carlos Castaneda, procurei
relacionar aspectos de sua obra com a filosofia ocidental. Comecei, então a ler
histórias da Filosofia e o interesse foi aumentando, e acabei abandonando a
parte mística pelo saber filosófico racional.
Eu navego na internet desde o início de 1996. Em julho de
1997 eu comecei a produzir, como exercício para a memória e entendimento,
resumos e fichamentos das minhas leituras em filosofia. Isso gerou, então, os
textos introdutórios que constam até hoje na página, as vidas e obras dos pré
socráticos até Rousseau. Porém, quando fui fazer o resumo de Kant, percebi que
este era um autor que não podia ser facilmente simplificado sem drástica perda
de conteúdo (mais tarde descobri que é assim com todos os outros). No final de
97 fiz Fuvest e em 1998 comecei a faculdade de filosofia da USP. Lá a minha
maneira de ler filosofia mudou muito.
Se antes eu lia um livro como o Discurso do Método em uma
semana e achava que tinha entendido, na faculdade percebi que de um texto
clássico pode-se extrair um universo de conceitos, interpretações, entrelinhas
e associações. Ficamos um semestre com a professora Marilena Chauí lendo apenas
as duas primeiras meditações de Descartes, que juntam pouco mais de 30 páginas.
Quando lancei o Consciencia.org em 1997, notei que naquela época existiam na
Internet apenas três páginas de filosofia boas em português, em contraposição
com um já imenso conteúdo em inglês, e resolvi colocar meus textos e produzir
novos.
Inicialmente a página estava hospedada na Geocities, mas
depois que ela passou a vincular propagandas, resolvi partir para um domínio
próprio, em 1998. Este domínio permitiu eu ampliar muito os recursos do sitea
em termos técnicos, com várias formas de interatividade, como votações, fórum,
etc. O conteúdo que passou então a ser acrescentado é basicamente os meus
trabalhos na faculdade e de outros estudantes de filosofia, além de alguns
textos clássicos. No entanto, eu noto, pelas estatísticas do Consciencia.org,
que o maior interesse das pessoas continua sendo os das páginas que fiz em
1997, antes de entrar na faculdade, pois são mais simples e assimiláveis.
Eu creio que estas tentativas de simplificar o universo
conceitual de cada autor é válida, principalmente para o jovem ou para o
profissional de outras áreas que quer se
ambientar na história da Filosofia. Agora, qualquer um que tenha pretensões
mais sérias no estudo da filosofia deve deixar resumos de lado e se deter no
estudo dos próprios autores, pois um livro clássico é inesgotável em termos do
debate que se pode criar em torno dele. Tanto que Platão é ainda lido com
entusiasmo depois de 2500 anos. As pessoas tem uma grande curiosidade em
aprender filosofia, por curiosidade pela história das idéias, pelos saberes
milenares, pela profundidade crítica. Mas a filosofia sempre foi mal entendida
por quem não a estuda.
Temos primeiramente uma idéia mal formada que a filosofia
não produz nada de útil, e que gera apenas discussões estéreis sobre assuntos
abstratos. Por outro lado temos a noção de que um texto de filosofia é absurdamente
difícil de ser lido, e que é preciso saber todos os filósofos anteriores para
ser um atual. Mas como essa curiosidade sempre existiu, as tentativas de tirar
a filosofia de seu círculo fechado (os autores de filosofia em geral não
escrevem para o público leigo, mas para outros autores/estudantes de filosofia)
e abri-lo para todos são sempre enormemente bem recebidas. As pessoas acabam
descobrindo influências enormes da filosofia no dia a dia.
O grande marco nesse sentido da simplificação que alcançou
as massas é o livro "Mundo de Sofia" de Jostein Gaardner. Jostein foi sempre um professor de segundo
grau. Seu livro foi escrito despretensiosamente para os jovens , os
adolescentes, mas alcançou enorme repercussão em todas as faixas etárias por aparentemente
ser uma maneira fácil e divertida de aprender filosofia. Para se ler com
proveito um livro do Hegel, por exemplo, é preciso um domínio incrivelmente
técnico da filosofia, que pouco estão dispostos a ter. Por outro lado, você
pode ler um resumão de Hegel e sair por aí dizendo que sabe este autor. Como eu
disse, eu não tenho nada contra isso, apenas acho que a pessoa tem de estar
aprofundando cada vez mais a leitura.
Todo entendimento começa superficialmente e vai se alargando
ao longo do tempo. Isso reflete também o conteúdo do Consciencia.org, que era
extremamente simples no começo, e foi ficando mais sério com o passar do tempo.
O desafio agora é tentar conciliar os dois públicos, o de pessoas que querem
resumos, e os de professores , estudantes, etc, que querem um conteúdo mais
"academicamente aceitável". Acho que a internet tem espaço para
todos.
Abraços. Desculpe se me estendi demais. Volte a me escrever
sempre que quiser."
Miguel Duclós
http://web.archive.org/web/20010308231229/http://www.consciencia.org/istoe.shtml
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