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21 de junho de 2015

LEVITAN: A TRANSGRESSÃO DA ORIGINALIDADE





Nei Duclós

O ciclo é um sistema, um movimento, uma estrutura que faz parte da natureza, das galáxias à casca dos caramujos. Num quintal onde eu morava em Porto Alegre, vi como as palmeiras sobrepunham em espiral camadas de redes de fibras até formar os troncos. Voltar ao ponto de partida, mas num ponto acima gerado pelo tempo, principio da espiral, é o que nos governa. Temos hoje à disposição todo o acervo cultural de qualquer época. Perdeu sentido nos inteirar de novidades, ficar preso a lançamentos, obedecer ao velho sistema analógico, às narrativas de começo, meio e fim. Ainda existem produtos, mas o que pega é a nuvem, tudo está no ar ao alcance de um clic. Podemos voltar a uma canção, um filme, uma pintura, a qualquer momento.


No cd Avulsas compareço em Desespero, um poema meu musicado e interpretado por esse múltiplo talento que é Claudio Levitan, o cara que inventou a ideia de eu lançar meu livro de estreia Outubro, dando-lhe depois identidade visual e ajudando a encaminhar para a aprovação no Instituto Estadual do Livro.  Nas outras faixas sobra poesia e melodia.

Carpinejar comparece com Chuva e Chama e Maria Carpi com Nosso Encontro e Fogo Aceso. Há ainda Florbela Spanca em Dedos de Veludo, impressionante poema sobre a morte, mas Levitan comparece nas outras faixas também como letrista: Genevoise, Garofêncio , Julia y su Sueño, Desnuda e Coisas por Dizer. Quer dizer: ele compõe, põe a letra, canta, toca voz e banjo-bandolim. E traz para a roda a voz de Bella Stone , arranjos de Silvio Marques, que manda bem no violão, violão de aço e programação de teclados, Zé Vidal ao piano e Cesar Moraes no contrabaixo , cada um em três canções.

Levitan é uma estranha criatura no mundo musical brasileiro. É único e tem uma obra de vanguarda sem ser vanguardista, e sim um radical da própria originalidade. Trabalha numa faixa de transgressão ao que estamos acostumados a ouvir e esperar. Sua linha melódica cria espaços próprios de interpretação, as poesias são sinuosamente intercaladas por súbitas paradas ou extensões de acordes, espichados pela voz que não se submete a cânone nenhum. Levitan é um intérprete brechtiano, com primoroso distanciamento: o tempo todo está nos colocando de cara e pelo ouvido a intervenção das autorias no resultado final. Nós não apenas ouvimos, mas participamos da construção da canção, como se ela fosse, e sempre é, a síntese de múltiplos ensaios sem que fique escondido o trabalho que há em cada nota.

Não se trata de investir em dissonâncias e aparatos rebuscados, mas em dizer, a cada segundo, como um autor pode ser original numa melodia ou na maneira de cantar um poema, que em Levitan ganha outra dimensão. Isso não o impede de incursões clássicas como a voz de peito aberto , como em Desespero, quando ele sobe até a surra de navalhas, preso num eterno elevador e cai abruptamente num sanatório de sonho e a mão sangrada.

Avulsas, que são canções criadas ao longo de uma vida dedicada à arte e á cultura, é uma experiência profunda que deve estar inserida em nossa precária atenção. Somos tomados pelo vazio pois achamos que nada se faz de importante, mas a verdade é que viciamos na indiferença e adiamos infinitamente esse momento do encontro entre nosso coração e nossa mente com a grandeza da criação fora de nós, lá no espaço infinito da humana convivência. Devemos ser melhores e escutar Claudio Levitan.


RETORNO - Mais informações: http://claudiolevitan.com/Avulsas

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