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7 de fevereiro de 2015

AZUL É A COR DO FOGO AMIGO




Nei Duclós


A quase adulta Adèle segue um caminho tradicional: quer ser professora, uma opção não considerada pela superioridade intelectual de sua companheira, Emma, que é artista plástica e exige que ela faça “alguma coisa”,como escrever, em vez de se contentar em dar aulas para crianças. Adèle é também assediada pelos colegas de classe, que não admitem sua experiência gay.  Precisa esconder da família seu namoro com uma mulher e cai em parafuso e arrependimento quando uma relação heterossexual a afasta de Emma, que ela considera o amor da sua vida.

O azul é o fogo da paixão: no cabelo da homossexual, no vestido da garota que vira mulher. Está sob o fogo cerrado, disparado por quem deveria dar o exemplo da inclusão. A busca por autenticidade acaba revelando as falsas opções. Emma no fundo já tinha optado por outra companhia e usa a traição eventual da namorada para agredi-la e expulsá-la. Adèle é a ingenuidade: sua relação com o jardim da infância, seu esforço na alfabetização dos petizes, sua compenetração nos estudos, seu comportamento familiar harmônico são os vetores tradicionais de uma sociedade que se transformou. Ela participa dessa mudança indo para a rua contra a repressão, colocando música afro para francesinho dançar, frequentando bar gay e expondo sua experiência publicamente até ser escorraçada pelo mundo que abraçou.

La vie d'Adèle, ou “O azul é a cor da paixão” (nome original da graphic novel que deu origem ao filme, criada por Julie Maroh), venceu a Palma de Ouro de Cannes em 2013, prêmio dividido entre o diretor Abdellatif Kechiche e as atrizes Léa Seydoux (Emma) e Adèle Exarchopoulos (a própria). São três horas de contemporaneidade. São tocantes as cenas das manifestações de rua, em que a humanidade excluída na França pressiona o poder pela cidadania negada. A crueza dos hábitos alimentares (sem nenhum glamour, incluindo até arroto), as intermináveis cenas de sexo explícito (o foco didático do prazer só entre mulheres), as violências verbais, o choro convulso, a lassidão dos corpos devassados pela tesão antes ou depois do ato, o cigarro compulsivo, as bocas lambuzadas de molho e macarrão, as aproximações dos corpos nas conversas, tudo faz do filme um choque cultural de difícil deglutição.

Não é para o consumo, mas também não convida ao vômito. No fim tudo se acerta de maneira tradicional. Emma vai viver com mulher e filha, reproduzindo o esquema da família heterossexual e Adèle é flagrada no final sendo caçada por um pretendente. O filme vale pelo que expressa na moderna sociedade francesa com todas as suas contradições: a briga de foice no escuro entre o talento e o comércio, o pânico diante da imposição de gêneros não tradicionais ascendentes, a animação coletiva na presença da massa nas ruas, a acomodação familiar sendo traída pela mocidade em busca de algo que a transcenda etc.

Não é função do ensaísta recomendar ou tentar afastar espectadores. Cabe ao texto sobre cinema perceber o que faz da obra um evento importante.

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