Nei Duclós
Isso só funciona no cinema, diz Christian Marquand para Jean-Louis
Trintignant na cena de E Deus Criou a Mulher (Roger Vadim, 1956) em que o
marido desesperado tenta arrombar uma porta com tiros. O filme está fora
portanto do “cinema”, que era nessa época do auge de Hollywood a apropriação
americana de uma invenção francesa. Ao invés de o lugar definido pela indústria
do espetáculo, em que aparece normalmente como bibelô ou entretenimento, a mulher
irrompe numa demolidora Brigitte Bardot
aos 22 anos.
No litoral francês onde tudo está sob custódia de uma falsa
moral, representada pelos estaleiros focados na produção e no turismo, em que a
mãe castradora tenta afastar os dois filhos do “pecado” brandindo com os bons
costumes e os negócios da família, a mulher é a força da natureza que não
estava nos planos do esquema social. Ela sofre esse cerco ao tentar dedicar sua
sexualidade a alguém que ama, mas é traída pelo oportunismo de jovens e velhos,
como o empresário Curd Jurgens, um salafrário que tenta de todas as formas
manter a garota na aldeia e impedir que ela volte ao orfanato (a personagem “criança”
tinha menos de 21 anos).
As senhoras de preto e assexuadas se sentem aliviadas quando
sabem que a pecadora irá embora, mas tudo vai por água abaixo quando o filho
mais novo casa com ela. Mas aquela criatura ninguém doma, nem ela mesma,. que
se entrega à sua confusão provocada pela exclusão social, o cinismo de quem a
confina na imagem da prostituição e no ócio a que é submetida por encarnar a
tentação. Vadim se esmera em mostrar Bardot com todos seus atributos,
transformando-a no exemplo máximo da sensualidade dentro e fora da tela.
Seu filme transgride as molduras da época ao mostrar a briga
de marmanjos sem o enfeite coreográfico dos filmes de sucesso. O marido apanha
de verdade, os irmãos se machucam em cena. Tudo soa uma autenticidade rústica,
reforçada pela simplicidade da narrativa, quase amadorística e que pode ser
considerada não convincente. Talvez seja proposital, mas imagino que tem a ver
com as limitações do cineasta, que assim mesmo achou seu caminho próprio, fora
da vizinhança (a nouvelle vague de um lado e o espetáculo das grandes produções
do outro).É, apesar de tudo, um cinema de autor. Não como vemos os grandes
mestres, mas como um artista com domínio sobre seu ofício.
Sua Bardot é inesquecível e moldou o nosso tempo. Toda a
sensualidade transgressora da mulher que se apaixona e não consegue sufocar seus
instintos esta representada naquela ex-adolescente que partiu a coração da
marmanjada. Enquanto ela dança com as pernas na música da negritude, os
homens de terno a encaram, amarrados na inveja e na imobilidade. Os homens são
desmascarados em sua falta de escrúpulos e covardia. A Bardot é atribuída a
vocação da inocência perdida. É Deus que intervém no sistema podre do dinheiro
e da sacanagem comercial. Coloca na roda a mulher que tem poder de se comportar
como quer, apesar de sofrer as consequências dessa atitude.
Tudo isso é cinema. Um cinema que decidiu achar a mulher que
se revelava naquela época e que assumia a libertação feminina ainda no início,
quando havia apenas desconforto diant de tantos desafios. Mas o melhor estava
para vir depois.
Nenhum comentário:
Postar um comentário