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28 de setembro de 2014

DE OLHOS ENXUTOS



Nei Duclós

Preciso espichar as pernas, ler alguma coisas, pensar mais bobagem. Sobre como levei dois tiros e fui abandonado em alto mar e me salvei e consegui chegar numa ilha. Lá aprendi a sobreviver e fiquei por cinco anos. E depois peguei um navio e fui clandestino para Portugal onde adquiri nova identidade. Virei mascate e consegui algum dinheiro intermediando coisas. Encontrei a moça trash no trem e fizemos amizade e ela se tornou minha secretária. Era minúscula e conversávamos muito sobre negócios.

E fomos então numa recepção e todos nos olhavam mas eu precisava apenas de uma secretária. Ela era hacker. Comprei um vestido tubinho branco para ela e ela parecia uma esquila de tão pequena. Mas ja era maior tinha 21 anos e uma cara redonda e olhos orientais. Usava um brinco meio piercing e mascava chicletes imaginários. Trabalhávamos até tarde e dormíamos agarrados, mas nunca rolava nada. 

Um dia fui me embora para Paris trabalhar numa livraria de ex-colega meu do navio. Ficava imóvel o dia inteiro limpando livros antigos que ninguém comprava. Até que uma garota me fotografou e descobriu que eu era o avô de uma amiga dela, que tinha morrido havia dez anos. No país onde morava, que seria o meu antes de ter ido para a ilha, não acreditaram na historia e por sua insistência vieram me encontrar. Na época eu morava com uma viúva rica que se engraçou comigo, eu usava capotões surrados. Conheci então os pais da minha neta numa praça onde costumava tomar café na calçada numa mesa, Eu tinha sapatos velhos e estava completamente diferente e os pais da neta não acreditaram que era eu mesmo e foram embora.

Eu pegava chuva todos os dias e vivia só apesar de estar na casa da viúva que nunca estava por lá. Paris no inverno é barra, muta solidão. Até que um dia fui descoberto graças à garota que me fotografou, me descobriu e que tinha uma amiga neta de mim. Fui levado de volta ao Brasil vestindo um uniforme da Marinha. Tinha o cabelo vermelho queimado pelo sol e a pele cinza de muitos invernos na Europa. Fui recebido pelo meu país de olhos enxutos. Só os pássaros choraram. Os pássaros são muito sentimentais.


27 de setembro de 2014

LUGAR DE BARCOS, DE JOÃO BATISTA REZENDE



Nei Duclós

Alguns dados dizem pouco do oculto poeta João Batista Rezende (na foto, com seu livro). É gaúcho de Restinga Seca, que pertencia a Santa Maria, nasceu em 1956 e mora em Garopaba, SC, há 30 anos. Participou da antologia Teia 2, nos anos 70, de Porto Alegre, livro que também conta com alguns poemas meus. Mas o importante é que ele lançou em maio de 2013 o excelente LUGAR DE BARCOS, editado pela Maré – Movimento Açoriano de Resgate, com ilustrações de um artista local, Licínio e com muitas invenções poéticas, apresentadas de maneira graficamente diversa e que contém alta voltagem de poesia, o que é raro em qualquer época e em qualquer país. Bom demais, Rezende detona com seu livro de 70 páginas.

Selecionei alguns trechos de poemas, para mostrar a dimensão da sua criação primorosa.

“O meu jogo de xadrez com o tempo
É o mar batendo na pedra
e a flor com raiz na espera
ciente, vou perder
mas perco limpo

*

A poesia morre quando o olhar vicia na mesmice
Mesmo que tudo seja belo e se torne familiar
Poetizar seria só mente olhar

*

Se eu bato a porta do meu ver
não hei de ver o mar que me adotou

 *

Entre um olhar e outro
ela me acertou em seio

 *

Desde o instante em que a lua provocou o lobo
a selva deixou de ser apenas sobrevivência

*

Sim sou poeta
e ainda tem gente
que quer que eu escreva “

(João Batista Rezende)

UMA ESTRANHA E COMPLICADA GUERRA



Nei Duclós

Foi muita coragem de Tabajara Ruas levar para a tela o romance Os Senhores da Guerra, de José Antonio Severo. Apresentado no último festival de Gramado, o filme ganhou Prêmio Especial do Júri ( além de melhor atriz coadjuvante para Andrea Buzato), se destacando pela originalidade do tema e sua abordagem. Conhecimento vem do estranhamento.dizem os filósofos,  e tudo é estranho nesta obra de inúmeras revelações. A começar pelo próprio assunto. Existem muitas percepções das revoluções de 1923 e 1924. Os fatos geram as lendas, seus protagonistas os mitos, a memória se mantém pela literatura e a História entra por último, tentando colocar ordem na bagunça. Em vão. Para capturar a complexidade do conflito, é preciso resgatar, recompor, encarnar, projetar e transcender o que aconteceu há muito tempo e que insiste em manter-se oculto principalmente agora, nesta era do eterno presente.

A História brasileira está sendo totalmente reescrita nos últimos anos. Tudo se mostra muito complicado, as percepções tradicionais não cabem mais na diversidade das abordagens e é preciso ir atrás do prejuízo. De que se trata a guerra republicana dos anos 1920? É uma herança da revolução federalista de 1893, quando Floriano Peixoto conflagrou o país ao apoiar os presidentes provinciais que tinham celebrado o golpe de Deodoro, colocando assim o governo federal contra as situações estaduais postas para fora dos palácios. Ela é fruto do embate entre o federalismo oligárquico, fundado no latifúndio e na dependência das exportações,  e o centraliismo modernizador, que pretendia tirar o país do atraso com um poder sem contestação.

Ambas as forças já mediam armas desde o Império, que caiu em função desse duelo, com as tendências políticas se deslocando dos seus discursos, pois as duas queriam a mesma coisa, ficar no poder para sempre. A constituição (o poder nos ombros do Legislativo) versus o mando (o poder na mão de ferro de um líder) estava no miolo do drama, mas depois que a guerra começa, seus efeitos devastadores se espalham pela população e as identidades se misturam, virando um desafio à compreensão. Isso está muito bem representado pela briga entre irmãos (Julio e Carlos Bozano, interpretados por Rafael Cardoso e André Arteche), que em cada lado oposto defendiam ideais e acabaram sucumbindo à realidade do sangue vertido generosamente na mesquinharia política.

Os Senhores da guerra é um filme ambicioso que trabalha em três tempos. Primeiro, a  narrativa poética, a cargo do poeta uruguaianense Omar Villela Gomes, que segue a saga na tradição dos grandes poemas campestres como Antonio Chimango e Martin Fierro, por sua vez herdeiros de ancestral tradição da cultura oral e guerreira. Segundo, a explicação didática das batalhas e do que elas representavam, uma especialidade do escritor Severo, como ficou demonstrado em seu épico sobre o General Osório, uma aula de História da longa guerra brasileira no século 19 e que aqui desce a detalhes reveladores, como a estratégia minuciosa dos confrontos no pampa.

A luta era entre legalistas, ditos  chimangos, apelido do seu chefe, o presidente estadual gaúcho, Borges de Medeiros, confundido com uma ave de rapina local pela pena contundente de Amaro Juvenal, codinome do político federalista Ramiro Barcellos,  e os maragatos, os insurgentes herdeiros da liderança da época do império de Gaspar Silveira Martins e que tinha em Assis Brasil, autor da constituição da República, seu representante máximo. E terceiro, os bastidores políticos e amorosos da trama, em sequências onde se cruzam discursos ao redor de mesas e declarações em salas de luxo pontuados pelas danças , os concertos domésticos e as declamações nos acampamentos.

O filme expõe o esforço brutal necessário para contar a história, pois não é fácil fardar centenas de pessoas, providenciar as armas da época, fazer os figurantes marchar em campo aberto e lutar com desenvoltura e crueldade verossímeis. A produção também permite que o filme ocupe prédios históricos sem cair na tentação da reprodução engessada dos eventos do passado, como acontece normalmente em filmes brasileiros do gênero. A cuidada produção de Ligia Walper supera a dificuldade maior que é convencer o espectador que estamos realmente nos anos 1920 (um truque que está na natureza do cinema, uma arte sempre voltada para si mesma e explícita na sua metalinguagem) e não apontando a câmara para pessoas fantasiadas. Há um esmerado trabalho com os atores, assumido em parte por Miguel Ramos,recentemente falecido e homenageado no final do filme, além de ter feito uma maravilhosa ponta de artista saltimbanco.

Há um sussurrar coletivo de cobras criadas, caudilhos que se orgulham de meter medo, jovens comandantes desesperados e aos gritos no auge da batalha e flashs assombrados de mortes e atentados neste filme que mostra a superposição de épocas no desenvolvimento tardio do país continente, expropriado de suas riquezas e marginalizado pela rapina estrangeira. A Primeira Grande Guerra já tinha mostrado mudanças profundas dos instrumentos e estratégias nos conflitos, mas em 1923 e 1924 tínhamos ainda resquícios do século 19, como se as lanças dos farrapos marcassem encontro com o automóvel e o telefone. É uma guerra brasileira, específica em seu perfil de extrema diversidade, tratada aqui com absoluta seriedade e muito talento.

Há um detalhe importante a ser observado: 1923 e 1924 são duas guerras diferentes, apesar da ligação umbilical (houve vingança contra os combatentes de 1923 e isso alimentou o ódio). A primeira foi uma insurreição civil federalista contra as tropas legalistas. O Exército ficou neutro, apesar dos apelos dos chefes maragatos. A segunda foi uma porção do Exército que se insurgiu para vingar a derrota de 1922, quando um golpe militar fracassou na areia de Copacabana. O Exército revoltoso teve entretanto de lançar mão dos combatentes civis de lenço vermelho quando viram ser impossível vencer os borgistas. Outra coisa: em julho de 1924, houve a revolta em São Paulo, com o bombardeamento da cidade e a fuga dos revoltosos para o oeste do Paraná. Em outubro, os quartéis gaúchos levantaram a bandeira vermelha da revolução: os oficiais Prestes, Siqueira Campos, João Alberto e Juarez Tavora rebelaram a soldadesca na fronteira (Santo Ângelo, Itaqui, São Borja, Alegrete, Uruguaiana). Santa Maria e outras cidades fizeram parte dessa guerra, cada uma com suas identidades, seus líderes, suas artimanhas, seus vencidos, seus heróis.

A famosa frase de Brecht, “triste país que precisa de heróis”, dita num contexto de conflagração mundial contra o fascismo e o nazismo, costuma migrar para nossas paragens para reforçar a ideia de que não temos heróis ou não deveríamos ter. Mas basta ler sobre nossas intermináveis guerras para vermos pipocar em todos os fronts os abnegados heróis da Pátria, cada um com suas qualidades e defeitos. É o Tempo que grito em nosso ouvido e só mesmo a literatura e o cinema para nos mostrar esse berro com toda a sua grandeza. Os Senhores da Guerra, filme brasileiro e gaúcho, baseado em competente literatura, faz isso, com muita propriedade.

RETORNO -  Imagem desta edição: a perseguição aos combatentes de 1923 depois do Pacto das Pedras Altas, uma das semente da guerra do ano seguinte.

26 de setembro de 2014

DÍVIDA



Nei Duclós

Dizes flor e eu sinto o perfume
palavra muda como as plantas
cheiro da vinha e da ordenha
lenha no fogo, crepitar de luzes

Somos o rosto que pega chuva
frente à janela que dá para a rua
o poema se perde, mas não recua
na luva que me atiras sonâmbula

São só palavras, dizem de ciúme
encosto promovido pela fantasia
e não algo sério, de compromisso

Devemos apenas para o sentimento
pagamos aos sorvos na hora do beijo
e nos outros devidos procedimentos


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Dorothee Golz

25 de setembro de 2014

ESCRITURAS



Nei Duclós

É prazeroso cumprir o próprio ofício
Completar o sonho com destino
Fazer exercício do que foi esboço
substituir a falsidade e o desperdício

Conseguir é ver que tinha sido inútil
adiar a decisão de levantar a âncora
nada interrompe o ralo dos minutos
é raso o jarro que comporta a vida

Por-se como Fídias na escultura atenta
como Rafael nos trâmites da pintura
escrever o Quixote no frigir do vento
armazenar a ciência em potes de vidro

Oui muito menos.colecionar gravuras
de perdidos livros em sebos do Centro
adubar a terra para a vitória do trigo
completar o poema desenhado lento

É no fundo amor, palavra que está gasta
mas como as escrituras mantém a força
o jogo eterno ainda é a nossa marca
para além da fuga, a alma gera o corpo


RETORNO - Imagem desta edição: obra de Giovanni Gerolamo Savoldo