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29 de maio de 2014

É FÁCIL FAZER POEMA



Nei Duclós

É fácil fazer poema
É criar sem ter motivo
exercer certo domínio
sobre o que sobra da mesa
migalhas de pão dormido
folhas de erva ardida
rosnar fora da matilha
aguentar soco na lira

De nada mais se precisa
umas palavras corridas
estrofes como sussurros
vogais em jogral de gritos
sílabas furando fila
vociferar o inaudito
fingir a dor mais cretina
descobrir quando desistem

Depois jogar os escritos
de cima dos edifícios
que sobrevoem os vícios
e rastejem pelo lixo
e se misturem ao dia
como no carro a buzina
que seja apenas poema
e não carta de princípios

Que o verso não catequize
nem lamente o ocorrido
ou tenha dó dos aflitos
amor que já não combina
esteja só como um filho
quando foge da família
verso à toa de lambuja
indiferente e pacífico

É fácil fazer poema
basta esquecer o ofício
tecer a lã do crepúsculo
inflamar a lua explícita
fugir quando é favorito
buscar na hora do exílio
exagerar em ser livre
inventar o próprio abismo



RETORNO - Imagem desta edição: obra de Jules-Elie Delaunay.

ASTROLÁBIO



Nei Duclós

Não houvesse a lógica das esferas
não haveria outono, pomar de tua espécie
nem primavera, floração de vida eterna
mas só verão, meu coração de areia
e inverno, meu corpo sob a neve

Haveria a treva, cosmo sem estrela
curvas de abandono, esquinas de fronteira
onde a tocaia espreita, mão na cartucheira
e não teu rosto, descendo a carruagem
sobre a planície intacta, cura da cegueira

Haveria esgrima, talho de alto a baixo
forma sem o barro, caos sem partitura
e não a valsa, aperto na cintura
jamais o sonho, espada em mundo falso
próximo em tua corte, fada soberana

Não fosse a álgebra e a trigonometria
que rege cadafalsos na órbita celeste
minha função seria a tosca aritmética
onde calculo o custo de viver sem vida
Mas fui adotado pela ciência empírica

Tentativa e acerto, eis minha conduta
mestre do astrolábio, bússola bendita
raiz quadrada em partes do infinito
fórmulas cifradas, sinais dos artifícios
Símbolo e compasso, ângulo e pirâmide

É lá, no Olimpo, onde tudo é escasso
(os deuses se foram levando a poesia)
que és absoluta, musa em meu conflito
submetida à obra de obtuso escriba
que faz por amor o que seria estéril


RETORNO - Imagem desta edição: O Geógrafo, obra de Vermeer

25 de maio de 2014

FORA DO CADERNO



Nei Duclós

A solidão, a despedida, faziam parte da família. No território ímpio da ausência medrou a poesia.

Fechei o caderno. As memórias cansam.

Depois de contar sua vida, invente outra.

Olhava para o teto, que transcendia. Estava em outra religião, a do heroísmo. Quando descia, era um despencar de amor impossível. Tudo junto naquelas tardes de moças inesquecíveis.

Nosso amor não passa de uma frase. Mas já dura anos.

Deus te crie. Deus dentro de ti.

Não sei de onde tiro o que te aproxima. Talvez a vontade que me desperta todos os dias. De estar contigo, mesmo que não existas.

Deste indeciso amor nada ficará. Só quando o vento soprar numa pluma esquecida no teto é que haverá memória do que hoje desconfias.

Palavras passam como nuvens. Algodões em teus verões expostos. Chuva nas reservas do teu corpo.

Te decepciono com as alternativas que me dão por perdido. Mas sempre fui assim, neblina dos meus olhos.

Fomos corridos pelas evidências do que somos. Mas driblamos o explícito com nosso ofício, tirar som da pedra bruta.

Não estás afim, mas não me importo. Vale o escrito, desenhado em teu muro.

Minto para viver o que me negam. Sinto para dizer a verdade.

Desistimos porque tudo parece o mesmo. Mas cada minuto é o milagre que pedimos.

Moro em ti, amor que a vida permitiu. Onde me refugio, canteiro sob a varanda dos teus dias.

Saudade é a identidade do amor verdadeiro.

Esfriou. Subitamente. O inverno é uma visita que não se anuncia, embora esteja prevista no calendário. Achamos que o calor continuará para sempre. De repente, estamos em plena geleira sem tempo de migrar para os verões remotos.


O mesmo verso antigo que guardaste um dia agora está na esquina passando frio. Convide-o para um café e escute com outros olhos o que ele disse.

Sonhei-me em teu sono.Me despertaste porque queria tocar.

Amanheceste sem auxílio de ninguém. És um impulso que inventa o dia

Nenhum som, nenhuma luz lá fora. Tudo se refugiou no que chamas alma e que é tudo de ti.


 OLHAR PERDIDO

- Sempre achei que homem não ama, disse a Sereia.
- E é verdade, disse Jack o Marujo. Eu apenas me perdi no teu olhar.

- É sublime o fato de você ser sereia, disse Jack o Marujo.
- Por que? perguntou a Sereia.
- Porque fico trêmulo ao te tirar as escamas.

- Tem certeza que me ama? disse a Sereia.
- Certeza não tenho, disse Jack o Marujo. Só uma espécie de tempestade que não passa nunca.

- Cedo demais para pensar bobagem, disse ela.
- É o melhor momento, disse ele. Depois as bobagens nos impedem de pensar.

- Linda, disse ele.
- Não sou, disse ela.
- Que bom. Meus olhos odeiam concorrência



22 de maio de 2014

JORNALISMO DA HORA: TUITS DE MAIO



Nei Duclós

Toda manhã, religiosamente, comento as manchetes e notícias da mídia no Twitter. E faço intervenções variadas sobre assuntos da hora. Neste mês tenho aprontado bastante. Uma seleta dos tuits:

Jornaliista escreve e jornal publica: "O híbrido funciona hora com eletricidade hora com gasolina". Ora, ora.
Deve ser o jornalismo da hora.

Para que trancafiar se deixam o bandido usar o celular dentro da cadeia?

O legado da Copa e da Olimpíada estará nas mãos do delegado.

"Dada como morta, ex-namorada do líder coreano Kim Jung-un ressurge". Os crocodilos devolveram?

Roberto Carlos, ninguém quer saber da tua vida. Desencana desse troço, tchê.

Polícia faz greve. Ninguém avisou os bandidos, que continuam no batente.

Folha: "Príncipe Harry quer visitar a cracolândia durante a Copa". Por que ele não vai visitar a madrasta? O impacto visual é o mesmo.

Folha usa "avalia como concreto risco". Não dá para ler.
Folha usa "perenizar desoneração". Não dá para ler.
Folha usa "nova espécie de crocodilo extinto". Se o bicho está extinto como a espécie pode ser nova? Não dá para ler.

O milionário sociólogo italiano do ócio encontrou sua morada. O Brasil.

Siga de volta quem está me seguindo, disse o detetive.

Leis, fronteiras, governos são acordos coletivos, significam paz na diferença. Se o crime assume o poder, o convívio social se desequilibra.

Aeroportos estão prontos. Só falta o teto.

A palavra xis é preconceito.
- Estou gripado.
- Isso é preconceito seu.

Depois desta no Brasil, não haverá mais Copa. Deu para bola.

Paradoxo: o leão não faz declarações.

Nudez alien: enfim caiu a ficha. Substituíram o Schwazzenegger pela Scarlet Johanssen.

Libertaram todos para mascarar a operação.O objetivo era libertar um só, aquele. Mas foi preciso jogar areia nos olhos da opinião pública.

Eleição presidencial será disputada pelos candidatos Ninguém, De Novo, Nada a Ver e Quem?

Desaba o teto do aeroporto de Manaus. O Brasil da ditadura não foi feito para a chuva.

"Com obras em atraso, novo Viracopos não receberá passageiros para a Copa". É copos, não copa. Parece que bebem, que viram copos.

Quando roubavam milhões, acabava em pizza. Hoje que roubam bilhões, acaba em caviar.

Argentinos cumprem sua missão de serem los más grandes del mundo. Geraram um Papa, uma rainha européia e o maior de todos os dinossauros.
Só falta a Argentina ganhar a Copa da Fifa no Brasil. Aí o pacote está completo.

Felipão deu beijinho no ombro para os invejosos. Ninguém inveja a seleção, nem está contra o Brasil. Mas contra a corrupção e o desperdício.

O noticiário de TV sobre o Brasil é um plantão policial. Editor: delegado. Repórter: investigador. Redator: escrivão.

O país está em convulsão social porque o tecido da nação foi esgarçado pela incúria e a cobiça de seus governantes, de qualquer partido.

Show de violência na Virada Cultural. É um problema de SP, não da Virada, diz o secretário da cultural, sofismando para tirar da reta.

Caiu granizo em SP e o pessoal da Globo, do Bom Dia Brasil, se assanha. Parece neve! Paisagem européia! Dãããã. Ora vão cagar pedra.

O Alckmin é candidato à reeleição. Mas ele não é governador desde 1910? Reeleição reproduz a República Velha, que convulsionou o país.

Claudia Leite e Pit Bull cantam we are one hino oficial da copa. Somos o rebotalho do mundo.
we are one um bom cacete.

Café filosófico na TV Cultura. O conferencista diz que macho e fêmea são conceitos inexistentes na natureza.Isso é coisa nossa,disse ele. Ok
É assombroso o desplante com que dizem coisas bizarras num tom professoral que não admite contestação.

O crime no varejo é uma obra do crime no atacado.

"São Paulo é um favelão sem água" (frase do jornalista e poeta Carlos Caramez, em 1976).

Agostinho da Silva, filósofo português,escreveu:"O maior inimigo de um governo é um povo culto".Atribuíram a frase ao Jô Soares. Até quando?
Jô Soares não é um pensador, é um ator. Diz falas escritas por outras pessoas.

"Uso medicinal da maconha no Brasil fica mais próximo". É a larica sistêmica.

Seria simples detonar a ponte Hercilio Luz e construir uma nova, igualzinha, mas com recursos modernos de mobilidade. Mas preferem remendar.
"Nenhum aeroporto das cidades-sede ficou pronto para a Copa". Venham a nado, venham a pé. Humpf. Nóis semo foda.
Não aprendem nunca. Obra não é para ser concluída. Se concluir a obra, acaba a mamata. É para se arrastar até a máxima impostura

Você confronta a opínião alheia e o interlocutor tenta se apropriar da tua fala: Exato! diz ele. Exato o cacete.

Vamos então atualizar os clássicos, como fizeram com Machado. Ex.:Usmanos de AR-15 a comando dos trutas (As armas e os barões assinalados)
Do jeito que vai, Memórias Póstumas de Brás Cubas serão recordações dos médicos cubanos no bairro do Brás
O Cabeça Fraca (O Alienista)
Copy ranheta teve o troco ao mexer no texto do “correspondente de Portugal” q o editor lhe enviara. Pessoal!Ele copidescou o Eça de Queiroz!

Eu sou fulano de tal e este é o noticiário do Canal Xis. Mas o apresentador já está identificado e o telespectador sabe o canal onde está.

Não desejo boa leitura para ninguém. A leitura pode ser má. Vale também.
É batata. Todo editorial de revistinha fuleira termina com um Boa Leitura! Não deseje nem boa nem má leitura. A pessoa já está lendo.

Vários acidentes com pessoas sendo arrastadas por carros. Virou moda?