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1 de agosto de 2013

ATLETA DE ABISMOS



Nei Duclós

Poesia é quando a palavra desaparece. No seu lugar, algo toma forma, mas não se mostra.  Como tocar nessa densidade de neblina, ou com natureza de palimpsesto, a mensagem oculta num papel que só se revela com a aproximação do fogo? O poeta não parece ser a pessoa mais indicada, pois exerce uma arte exposta, o verbo na vitrine, derramado ou enxuto, mas corpóreo, definido. E pior: totalmente identificado com o autor. O truque, ou o segredo, que é a manha do ilusionista,  é ser invisível ou disfarçar-se de “sombra e fumaça”, imagem usada por  Ricardo Silvestrin em Metal (Arte e Oficios, 133 pgs.).

Vestindo essa persona, o do pesquisador que atinge outra realidade quando leva um objeto à sua essência, o poeta migra o foco da percepção para a margem. Aprende “a habitar a antimatéria, a amar o que não se prova, a esperar o que não se anuncia”. E a escrever as “memórias de um esquecido”, que reporta todas as evidências do momento em que nasceu, menos a própria, que sumiu da lembrança. É quando descobrimos, levados por esse desanimador de auditório que não ensina a hora certa de bater palmas ou vaiar, o que faz uma estátua na praça, feliz com seu rosto de mármore, enquanto o herói mesmo, que ela representa, já foi esquecido.

Mas desaparecer deixa rastros. É a poesia de Silvestrin, que passa a borracha em cima do que diz com desfechos que usam o lugar comum para virar-lhes do avesso. Expressões antigas ou novas, sempre prosaicas, impregnadas no imaginário, sem o mínimo carisma na sociedade do espetáculo, são laços de fita em cima dos presentes distribuídos em natais inexistentes, mas sinceros. É como acontece na nanotecnologia, em que a física entra numa dimensão bizarra, caótica, completamente diferente do que assoma quando todos os elementos primários se grudam para formar a coisa vista e reconhecida.

No cartório desse poeta não há papel timbrado. Fazemos fila para tentar entender o que a poesia faz com o mundo e somos surpreendidos pelo impacto do anti-espetáculo. Não há tambores nem trovões ou gestos largos. Mas algo que se confunde com coloquialismo, espontaneidade, mas é outra coisa. É a vontade do poeta de desligar nossa leitura do que sabemos ser a palavra em estado poético letárgico. Somos convocados a sacudir o pó das narrativas, indo ao limite de um “atleta de abismos”, que vem de “um tempo que não existe” e diz: “não era noite não era dia/não era dentro não era fora/lá se ia ele no meio da névoa/ perguntando ao seu pensamento/o que é e o que não é/o que nem chegou a ser/ e um dia será / ou não será”.

Para não confundir essa torção de sentidos, não parecer que está fazendo gênero, o poeta/pesquisador precisa visitar o museu/laboratório da linguagem e lá  descobrir a origem de algumas palavras, como soneto, caneta tinteiro, esferográfica. Na sua oficina mal assombrada, disseca a mais cara palavra da poesia: “te arranca daqui com esse amor”, ou “o que você quer amando desse jeito?”

Reduzido ao seu tamanho mínimo – a criatura em queda permanente a virar sua fala do avesso, que cresce em contundência conforme vai se desfazendo – o poeta desveste a palavra até seu completo desaparecimento. Sua meta é atingir a arena do sentido oculto, mas viável, que quase nos toca, como a imagem do espelho. A palavra substituída por algo vislumbrado pelo poeta forma um conjunto de esboços compartilhados num jogo de ilusão, como  no cinema. Ou melhor, como na poesia, que aqui se escala como arte maior, mesmo que pareça apenas um show de variedades. É o disfarce supremo do autor, a mente estranha diante do impressionante mural de sua matéria prima.

É como um concerto pesado. Você vai curtir um som, mas acaba dançando com todas as letras. Os metais são intensos demais e emocionam pelo confronto entre o excesso sugerido e a proximidade que nos toca. Tudo explode em gotas, os poemas, aqui dispostos formalmente como se fossem bem comportados. Mas não são. Eles estão ali substituindo as palavras, que desapareceram.