Nei Duclós
Poesia é quando a palavra desaparece. No seu lugar, algo
toma forma, mas não se mostra. Como
tocar nessa densidade de neblina, ou com natureza de palimpsesto, a mensagem
oculta num papel que só se revela com a aproximação do fogo? O poeta não parece
ser a pessoa mais indicada, pois exerce uma arte exposta, o verbo na vitrine,
derramado ou enxuto, mas corpóreo, definido. E pior: totalmente identificado
com o autor. O truque, ou o segredo, que é a manha do ilusionista, é ser invisível ou disfarçar-se de “sombra e
fumaça”, imagem usada por Ricardo
Silvestrin em Metal (Arte e Oficios, 133 pgs.).
Vestindo essa persona, o do pesquisador que atinge outra
realidade quando leva um objeto à sua essência, o poeta migra o foco da
percepção para a margem. Aprende “a habitar a antimatéria, a amar o que não se
prova, a esperar o que não se anuncia”. E a escrever as “memórias de um
esquecido”, que reporta todas as evidências do momento em que nasceu, menos a
própria, que sumiu da lembrança. É quando descobrimos, levados por esse
desanimador de auditório que não ensina a hora certa de bater palmas ou vaiar,
o que faz uma estátua na praça, feliz com seu rosto de mármore, enquanto o
herói mesmo, que ela representa, já foi esquecido.
Mas desaparecer deixa rastros. É a poesia de Silvestrin, que
passa a borracha em cima do que diz com desfechos que usam o lugar comum para
virar-lhes do avesso. Expressões antigas ou novas, sempre prosaicas,
impregnadas no imaginário, sem o mínimo carisma na sociedade do espetáculo, são
laços de fita em cima dos presentes distribuídos em natais inexistentes, mas
sinceros. É como acontece na nanotecnologia, em que a física entra numa
dimensão bizarra, caótica, completamente diferente do que assoma quando todos
os elementos primários se grudam para formar a coisa vista e reconhecida.
No cartório desse poeta não há papel timbrado. Fazemos fila
para tentar entender o que a poesia faz com o mundo e somos surpreendidos pelo
impacto do anti-espetáculo. Não há tambores nem trovões ou gestos largos. Mas algo
que se confunde com coloquialismo, espontaneidade, mas é outra coisa. É a
vontade do poeta de desligar nossa leitura do que sabemos ser a palavra em
estado poético letárgico. Somos convocados a sacudir o pó das narrativas, indo
ao limite de um “atleta de abismos”, que vem de “um tempo que não existe” e
diz: “não era noite não era dia/não era dentro não era fora/lá se ia ele no
meio da névoa/ perguntando ao seu pensamento/o que é e o que não é/o que nem
chegou a ser/ e um dia será / ou não será”.
Para não confundir essa torção de sentidos, não parecer que
está fazendo gênero, o poeta/pesquisador precisa visitar o museu/laboratório da
linguagem e lá descobrir a origem de
algumas palavras, como soneto, caneta tinteiro, esferográfica. Na sua oficina
mal assombrada, disseca a mais cara palavra da poesia: “te arranca daqui com
esse amor”, ou “o que você quer amando desse jeito?”
Reduzido ao seu tamanho mínimo – a criatura em queda
permanente a virar sua fala do avesso, que cresce em contundência conforme vai
se desfazendo – o poeta desveste a palavra até seu completo desaparecimento.
Sua meta é atingir a arena do sentido oculto, mas viável, que quase nos toca,
como a imagem do espelho. A palavra substituída por algo vislumbrado pelo poeta
forma um conjunto de esboços compartilhados num jogo de ilusão, como no cinema. Ou melhor, como na poesia, que
aqui se escala como arte maior, mesmo que pareça apenas um show de variedades.
É o disfarce supremo do autor, a mente estranha diante do impressionante mural
de sua matéria prima.
É como um concerto pesado. Você vai curtir um som, mas acaba
dançando com todas as letras. Os metais são intensos demais e emocionam pelo
confronto entre o excesso sugerido e a proximidade que nos toca. Tudo explode
em gotas, os poemas, aqui dispostos formalmente como se fossem bem comportados.
Mas não são. Eles estão ali substituindo as palavras, que desapareceram.