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1 de julho de 2012

INSURGÊNCIA DO GÊNERO CONFINADO


Nei Duclós

Laura Maffioletti Campos, a narradora de Quarentena, novela de Vera Molina (Editora Proa, segunda edição, 93 pgs.), está confinada de todas as formas. Primeiro, pela situação familiar, dominada por um patriarca. Segundo, pela situação social, já que faz parte da classe dos proprietários rurais da fronteira gaúcha. Terceiro, pela guerra, que coloca sua casa sob a guarda armada por ser um foco de peste bubônica. E quarto, e não menos importante, por ser mulher, confinada na maternidade, na vida doméstica, na dependência do pai e do marido.

Mas esse quadro de confinamento não é um lugar comum literário, ao contrário. É território de convívio e denúncia, de aceitação e revolta, de contradições decisivas que revelam um quadro complexo de relações humanas, refletidas no diálogo interno que lança mão do diário, da confidência, da memória, da tesão, da ironia, do desespero, da revelação, do remorso e do sonho. Pois os limites que a submetem não significam que a protagonista esteja morta, ao contrário. Ela vive, reage, desafia. Sua saída é a literatura: por meio da história contada, ela sobrevive com sua integridade, mesmo que saia ferida da história.

E a história gira em torno de uma traição, conforme a percepção conservadora da sexualidade feminina. O foragido alemão que se esconde na sua casa (o pai pecuarista fazia negócios com a Alemanha) está no vórtice do desequilíbrio que assombra a casa. Laura já tinha rompido diques ao casar-se com o filho de um empregado. Intensifica sua necessidade de liberdade ao não compactuar com o engessamento nupcial e, ao ser abandonada, entrega-se para um empregado numa cena que não se limita à necessidade biológica, mas a essa força de ruptura que ela possui, encarcerada pelo fracasso do casamento e o vazio da vida nacional.

O ambiente é a primeira metade do século 20, em pequenos capítulos que são um primor de elipse. Nada existe em excesso em Quarentena e nada lhe falta. O que é contado está lá com toda a força do resgate de palavras de referência, tanto na vida rural ou urbana, como em atividades como a medicina, a maternidade, as festas, os acordos sociais e políticos. A voz da narradora é o refúgio da verdade: contra o mal entendido, ela demonstra a limpeza dos gestos e intenções, mesmo que estejam violados, muitas vezes, pelas dores, decepções e esperas.

A galeria humana, traçada em poucas linhas e falas, se sucedem sob os olhos da narradora com riqueza de detalhes: o marido que se faz na vida com a política e as indicações do sogro rico, o pai que é dominado pela mulher apesar de achar que manda, a mãe, sensual e aparentemente frágil, a empregada que tem plenos poderes na casa mutante da esposa abandonada e um casal de filhos, a amiga de infância e adolescência, de origem pobre e que é retirada do seu convívio depois de um escândalo abafado no internato. Nesses personagens coadjuvantes de forte presença, embalados em situações de resgate de um tempo que deixa marcas profundas, está mais explícita a qualidade literária do livro, pois é o entorno, a base de apoio em que rola uma vida traçada de modo exemplar em algumas décadas.

A seriedade com que aborda o tema, fruto da sua relação profunda com a palavra escrita, faz de Vera Molina, escritora de sólida formação e professora de Literatura e Inglês, um voz poderosa da literatura brasileira contemporânea. Sem pompa e sem escassez. Enxuta sem ser seca. Objetiva para o que interessa, contar direito uma história, e transcendente ao dispor os elementos narrativos com o talento de quem é craque no ofício. Com Vera Molina, temos uma porção importante do perfil da mulher brasileira, por meio dos limites da palavra, aqui trabalhada com o rigor à altura do gênero insubmisso que reporta.


RETORNO – Imagem desta edição: Vera Ione Molina Silva.