Nei Duclós
Laura Maffioletti Campos, a narradora de Quarentena, novela
de Vera Molina (Editora Proa, segunda edição, 93 pgs.), está confinada de todas
as formas. Primeiro, pela situação familiar, dominada por um patriarca.
Segundo, pela situação social, já que faz parte da classe dos proprietários
rurais da fronteira gaúcha. Terceiro, pela guerra, que coloca sua casa sob a
guarda armada por ser um foco de peste bubônica. E quarto, e não menos
importante, por ser mulher, confinada na maternidade, na vida doméstica, na
dependência do pai e do marido.
Mas esse quadro de confinamento não é um lugar comum
literário, ao contrário. É território de convívio e denúncia, de aceitação e
revolta, de contradições decisivas que revelam um quadro complexo de relações
humanas, refletidas no diálogo interno que lança mão do diário, da confidência,
da memória, da tesão, da ironia, do desespero, da revelação, do remorso e do
sonho. Pois os limites que a submetem não significam que a protagonista esteja
morta, ao contrário. Ela vive, reage, desafia. Sua saída é a literatura: por
meio da história contada, ela sobrevive com sua integridade, mesmo que saia
ferida da história.
E a história gira em torno de uma traição, conforme a
percepção conservadora da sexualidade feminina. O foragido alemão que se
esconde na sua casa (o pai pecuarista fazia negócios com a Alemanha) está no vórtice
do desequilíbrio que assombra a casa. Laura já tinha rompido diques ao casar-se
com o filho de um empregado. Intensifica sua necessidade de liberdade ao não
compactuar com o engessamento nupcial e, ao ser abandonada, entrega-se para um
empregado numa cena que não se limita à necessidade biológica, mas a essa força
de ruptura que ela possui, encarcerada pelo fracasso do casamento e o vazio da
vida nacional.
O ambiente é a primeira metade do século 20, em pequenos
capítulos que são um primor de elipse. Nada existe em excesso em Quarentena e
nada lhe falta. O que é contado está lá com toda a força do resgate de palavras
de referência, tanto na vida rural ou urbana, como em atividades como a
medicina, a maternidade, as festas, os acordos sociais e políticos. A voz da
narradora é o refúgio da verdade: contra o mal entendido, ela demonstra a
limpeza dos gestos e intenções, mesmo que estejam violados, muitas vezes, pelas
dores, decepções e esperas.
A galeria humana, traçada em poucas linhas e falas, se
sucedem sob os olhos da narradora com riqueza de detalhes: o marido que se faz
na vida com a política e as indicações do sogro rico, o pai que é dominado pela
mulher apesar de achar que manda, a mãe, sensual e aparentemente frágil, a
empregada que tem plenos poderes na casa mutante da esposa abandonada e um
casal de filhos, a amiga de infância e adolescência, de origem pobre e que é
retirada do seu convívio depois de um escândalo abafado no internato. Nesses
personagens coadjuvantes de forte presença, embalados em situações de resgate
de um tempo que deixa marcas profundas, está mais explícita a qualidade
literária do livro, pois é o entorno, a base de apoio em que rola uma vida
traçada de modo exemplar em algumas décadas.
A seriedade com que aborda o tema, fruto da sua relação
profunda com a palavra escrita, faz de Vera Molina, escritora de sólida
formação e professora de Literatura e Inglês, um voz poderosa da literatura
brasileira contemporânea. Sem pompa e sem escassez. Enxuta sem ser seca.
Objetiva para o que interessa, contar direito uma história, e transcendente ao
dispor os elementos narrativos com o talento de quem é craque no ofício. Com Vera
Molina, temos uma porção importante do perfil da mulher brasileira, por meio
dos limites da palavra, aqui trabalhada com o rigor à altura do gênero insubmisso
que reporta.
RETORNO – Imagem desta edição: Vera Ione Molina Silva.