Nei Duclós
Algumas palavras tornam-se indecentes quando usadas em
determinadas situações. “Ingredientes”, por exemplo, que um analista em close
na TV vibrou para comentar o crime hediondo do assassinato e esquartejamento do
ex-executivo da Yoki pela própria mulher. Como se o impacto causado na opinião
pública obedecesse a uma receita de bolo, quando os motivos do alarme são
óbvios. A ascendente social guindada da prostituição à cobertura de luxo pelo
casamento com um milionário colecionador obsessivo de armas sentiu faltar o
chão quando soube da traição do marido, sinal de que a devolveria, talvez, para
o gueto social ao qual pertencia anteriormente.
Isso não explica a crueldade e o sangue frio da assassina,
mas há no crime algo que toca fundo a cidadania em pânico nesta quadra do
esgarçamento social, quando, só no RS, há um crime a cada 2,5 minutos, como nos
informa a Zero Hora. Os arrastões em massa nos restaurantes e condomínios de
luxo, o varejão do sequestro relâmpago, a fuga combinada dos presídios em que
multidões de prisioneiros saem pela porta da frente, a liberação do pequeno
tráfico de drogas, a recessão econômica maquiada de benefício social e crédito
podre, entre muitos outros agravantes, chegam ao apogeu no ponto nodal do
esquartejamento que a miséria fez do status.
Ficou desmoralizada a análise superficial baseada em erros
de leituras sociológicas de que o crime é fruto da exclusão social, já que
existe bandido de todas as classes, principalmente entre as famílias ricas onde
jovens bem nutridos se atiram à gandaia da vida facinorosa. Mas o erro da
análise não elimina a importância da sinistra distribuição de renda no país que
criminaliza a esperança. A vagabundagem
corre solta e captura as mentes para todo tipo de ação mortal, desde as mais
recentes, pautadas pela tecnologia, como é o caso de desvio de dinheiro via
internet, até o velho conto de vigário, como aconteceu com o belo e esperançoso
casal de Diadema, Leila e Adenísio (foto acima), que sonhavam com uma volta à
natureza.
Queriam um pequeno sítio fora da brutalidade urbana e para
isso fizeram uma poupança, roubada por criminosos que os atraíram para uma
arapuca. Prometeram um preço camarada, desde que fosse à vista, em cash e lá foram
nossos dois queridos brasileiros, trabalhadores cheios de esperança, fechar um
negócio sem conhecer os trâmites básicos desse tipo de transação, que é fazer
tudo às claras, num cartório, com testemunhas e não num ermo brabo onde encontraram
a morte e foram sepultados num poço.
Talvez o negócio tivesse esse aspecto suspeito de todos os
negócios no Brasil, de algo fora da burocracia oficial. Para facilitar e agilizar as coisas, nada
melhor do que tratar diretamente com o proprietário, sem o jugo de papéis
inúteis ou de carimbos caros. Essa tentação que está por todo o canto
criminalizando tudo facilita o roubo e o assassinato e o casal foi vítima de
sua inocência misturada com a pressa de fazer acontecer. Imaginemos quanto
tempo levaram para conseguir nove mil reais (três mil foram retirados de um
caixa eletrônico pelos bandidos) trabalhando como babá ou operário. Eis que chegou o grande dia e eles foram com
as notas da sua honestidade se entregarem para a gula da preguiça sem piedade.
O que tem a ver status com isso? Muito. Marginalizados
economicamente, as duas vitimas optaram pela poupança, o honesto investimento
popular, para conseguir sair do ambiente brutal onde viveram tanto tempo. Quem
vive em lugares inóspitos e cruéis das grandes cidades, especialmente em seus
abandonados subúrbios, sabe o quanto vale sonhar com um lugar pacífico, perto
das plantas e dos bichos, longe do barulho e da poluição. A miséria ambiente força a cidadania a buscar
uma saída e ela, nessa busca, pode encontrar a frustração e a morte, quando
procurava até, talvez, uma alternativa de sobrevivência na atividade rural.
Essa é a tragédia do país entregue à sanha de todas as
máfias, com as instituições comprometidas por bandidos da pior espécie, que
exibem a cara deslavada da riqueza de fonte suspeita e impune, já que sempre
conseguem sair das prisões onde ficam alguns dias ou algumas horas. O mau
exemplo vem de cima e se espalha por todo o tecido social em frangalhos. Os
sobreviventes, os lutadores, assistem a tudo pasmos de espanto e medo. Ver um
casal milionário se destruir numa cobertura cheia de armas “legais” (quer dizer
que um colecionador pode ter um arsenal em casa desde que seja rico, sr. delegado?) discutindo pelo butim (traição
= separação = distribuição de bens) leva à percepção da profundidade do mal que
abate o país.
Mas a dor maior, se é que se pode falar isso, é resgatar os
corpos do casal pobre do fundo do poço, rescaldo de uma vida cheia de esperança
que foi jogada no lixo junto com a soberania da nação que perdeu o rumo do seu grande
destino.Talvez os crimes revelem algo mais profundo ainda: a de que o esquartejamento foi obra de máfias em conflito (para que tanta arma no apartamento da vítima? não haveria aí tráfico?) na maré alta de um negócio milionário, R$ 1,7 bilhão da venda da Yoki; ou a de que o assassinato do casal signifique o desespero de quem viu sua poupança se esfumar com as medidas do governo e resolveu arriscar num imóvel. Em ambos os casos, o dinheiro entra como o principal suspeito.