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29 de maio de 2012
JOHN FORD E O RENASCIMENTO DE UMA NAÇÃO
Nei Duclós
Trata-se da
América clássica, dos founders fathers, que se partiu na guerra da Secessão e
que em dois filmes de John Ford é recosturada por meio de princípios como a
tolerância, a Justiça, a paz e a coragem. Praticamente um é refilmagem do
outro. Ambos tem como protagonista o Judge Priest (personagem do escritor
Irving S. Cobb) disputando uma eleição em Kentuky, terra de linchadores e de intolerância
racial. O primeiro é de 1935 e tem como título o próprio juiz e o segundo de
1953, com título tirado de uma canção do sul, O Sol Brilha (The Sun Shines
Bright).
Fiquei apavorado
com a campanha difamatória contra John Ford por parte dos pseudo politicamente
corretos na rede,que o acusam de tirano, invejoso e racista. É próprio da
mediocridade tentar destruir o gênio, que a desmoraliza. Felizmente alguns ensaístas
consideram The Sun mais uma obra-prima do grande cineasta. Confirmei vendo o
drama de uma jovem adotada e alvo do desprezo social recuperando sua identidade
e sua honra graças à ação enérgica do juiz e de todos que o admiram e seguem
seus passos. Em Judge Priest, o foco está mais no pai da moça adotada, um herói
do Sul que ficou livre depois de lutar na guerra e consegue escapar de uma
acusação de agressão numa briga de bar.
É preciso
recosturar a nação eliminando a postura de derrotados e vencedores. Os
confederados não admitem que foram batidos nas batalhas heróicas onde perderam
seus melhores filhos. Velhos, alcoólatras, desempregados, vivem de lembranças e
da celebração de seus feitos. O Juiz faz parte desse grupo e corre o risco,
junto com alguns companheiros, de perder sua fonte de renda se for derrotado
por um hipócrita pomposo e demagogo, que o acusa de relapso e irresponsável.
Temos então o prato feito das aparências a serviço da má fé, que precisam ser
confrontadas pela legitimidade do senso de justiça humana, com todos os seus
defeitos, menos o de tentar usar a lei para a discriminação.
A presença poderosa
dos negros nos dois filmes foi acusada de um equívoco de Ford, como se o
diretor compactuasse com a escravidão e retratasse os negros cordatos e felizes
com seus senhores, expressando-se por meio de gestos caricaturais. Para
recosturar a nação, era preciso mostrar a inclusão dos negros na vida pacífica.
A perseguição e os maus tratos terão fim se houver justiça. O preconceito existe
como fator histórico, e os negros no filme se comportam como caricaturas, assim
como os veteranos brancos de guerra. Ford trabalha com estereótipos e os
desveste para mostrar o que há de precioso neles. O adolescente que foi salvo
dos linchadores pelo juiz mostra-se agradecido, o ex-escravo que tenta ganhar
uns trocados fazendo transporte de gente, o tio preocupado com o futuro do
sobrinho, todos são personagens negros de um John Ford que expressa o sul da
América com todos os seus defeitos e qualidades.
Outra obra-prima
de Ford, Os Rastreadores, de 1956, também é tratada de forma indecorosa por
alguns resenhistas, que se locupletam sobre o ódio racial de Ethan Edwars,
interpretado por John Wayne. Nãoconseguem explicar ou tolerar a cena final em
que Ethan aceita a sobrinha que virou apache. “Vamos para casa, Debbie”, ou
seja, o ódio é substituído pela tolerância. Em The Sun, a cena tocante é a do
funeral da mãe da moça adotada, cacifado pelas prostitutas da cidade. A citação
bíblica é a de Maria Madalena. Não se trata de perdoar, o que implicaria uma
ascendência sobre o outro, mas de reconhecer que nãotemos condições de julgar e
por isso libertamos nosso semelhante da culpa e do crime.
John Ford é
primus inter pares, cineasta maior entre os maiores diretores de cinema. Merece
respeito. Não deu colher de chá para a mediocridade e a falsidade. É legítimo e
emocionante. O final apoteótico nos dois filmes faz chorar as pedras. O novo pai
fundador, eleito democraticamente pelo voto direto, que derrotou a demagogia, o Juiz da inclusão e da coragem, protagonista do renascimento de uma nação, saúda todos os segmentos sociais que
prestam homenagem desfilando na sua porta em uniforme de gala e no ritmo da
sintonia e do garbo: os ianques e os confederados, os veteranos e os recrutas, os oficiais e os soldados, as mulheres e as bandeiras, o
gris e o azul, as armas e as bandas. Ele vibra o chapéu no ar e está em prantos.
Depois se retira para dentro de casa a passo lento e ao som dos coros da nação
recosturada, como John Wayne em os Rastreadores, numa tomada célebre e canônica
do cinema fordiano.
A cultura
guerreira é o convívio que trabalha uma ferida em busca da cicatrização. É a
religião dos camaradas de luta, a sinceridade a toda prova, a transparência
absoluta. É bom que aprendam com o velho Ford com quantas qualidades se fazem seus
filmes épicos, perfeitos e maravilhosos.
RETORNO - Imagem desta edição: Judge Priest enfrenta os
linchadores de negros em cena de The Sun Shines Bright.