Nei Duclós
Em 1945 o cinema ainda se dava bem com a psiquiatria.
Gregory Peck podia se curar de seu distúrbio, a amnésia, e com a ajuda da doutora
Ingrid Bergman, lindíssima e fria, resolver um caso de assassinato em Spellbound,
de Alfred Hitchcock. Mas nos anos 60, quando a crítica à psiquiatria atingia
níveis de denúncia que iam do teatro à academia, de Peter Weiss a Foucault, o
cinema também brigou com a ciência criada por Freud. É o que atesta Psicose, de
1960, do mesmo Hitchcock, onde o psicótico não tem cura e é de verdade o
assassino de dupla personalidade; e Marat-Sade, filme de 1967 de Peter Brook
baseado em peça de Weiss, em que o Marques de Sade encena uma peça dentro do
hospício sobre o assassinato do revolucionário Marat.
A loucura deixou de ser um desvio individual e passou a
representar uma doença política. Quem tinha direito à recuperação eram as
pessoas confiáveis, como o personagem de Peck. E não outsiders como um hoteleiro
perdido no ermo traumatizado com a perda da mãe, como em Psyco. O divã funciona
para as pessoas de bem, enquanto o resto amarga nos depósitos mentais dos hospícios.
O ponto de inflexão dessa virada que destronou a psiquiatria como panacéia foi
a celebrado livro de Ken Kesey , Um Voo Rasante sobre o Ninho dos Cucos - One
Flew Over the Cuckoo's Nest, de 1959.
Cuco é uma ave que expulsa as outras para colocar seus ovos
e criar os filhotes. Voar sobre o ninho deles é ultrapassar os limites. Ken
Kesey se baseou na sua experiência de enfermeiro em num hospital psiquiátrico e
Michael Douglas levou uma década e meia para conseguir produzir o filme Um
Estranho no Ninho, de 1975, dirigido por Milos Forman. Mas antes dele o
intempestivo e genial Samuel Fuller se adiantou e fez uma versão da história à sua
maneira. Trata-se do brutal, radical, insuperável Shock Corridor, o Corredor do
Eletrochoque, numa tradução livre, o filme mais importante do celebrado cineasta cult e que bota
para correr todo esquema de punição e manipulação das mentes que a indústria da
psiquiatria, alimentada pelos poderes, impõe sobre a população.
Em nenhum lugar vi que Fuller se baseou em Kesey, mas está
na cara. Corridor é de 1963 e o livro é de 1959, lançado em 1962. O romance
conta a história de um criminoso que, para se livrar da prisão, decide se
internar num hospício fingindo-se de louco para passar bem. Dança, pois acaba
lobotomizado. O filme de Fuller é idêntico, só que com os elementos do próprio
Fuller, que entrou para trabalhar em jornal aos 12 anos e logo depois já era
repórter policial. Ele coloca o personagem como um repórter (interpretado por Peter Breck),que quer desvendar um crime no hospício e pede
para a amante se passar por sua irmã para denunciá-lo como incestuoso. Assim
ele garante um lugar no meio das testemunhas do assassinato.
Fuller faz os atores trabalhar, não deixa ninguém sossegado.
As cenas de surtos e de brigas são de arrebentar. Os cases são profundamente radicais. No livro
de Kesey existem as prostitutas, o índio americano, o baixinho, o gigante, uma
fauna variada de outsiders. No filme de Fuller há o negro racista (com
discursos impressionantes contra a própria raça) o ex-cientista nuclear que
pira e regride até a idade dos seis anos, o gigantesco obeso italiano que canta
óperas, o filho de fazendeiros sulistas que tinha virado comunista por abandono
ideológico dos pais e do governo e que se arrepende e tenta voltar, mas acaba
também no eletrochoque. E tem as ninfomaníacas, aqui tratadas como doentes
graves e agressivas.
O filme é uma espiral que envolve o protagonista até sua
loucura total. Manipulado pelo diretor do hospital de sobrenome Cristo, ele se deixa
arrastar pelo ambiente e, mesmo conseguindo decifrar o mistério do assassinato,
não consegue mais sair da armadilha que montou para si mesmo por pura
ambição,pois queria fazer uma reportagem que ganhasse o cobiçado prêmio
Pullitzer. A única personagem lúcida é a namorada do repórter, interpretado por
Constance Towers, que deu show em Naked Kiss. Em Corridor ela faz uma stripper
veterana que tenta demover o amante da sua piração, mas não consegue.
A loucura, em Fuller, é uma doença política. O negro
fascinado pela Ku Klux Klan representando a identificação da vítima com seus
algozes, o ex-cientista regredido á infância representando a irresponsabilidade
da ciência, o herdeiro sulista que vive fazendo jogos da Guerra da Secessão
mostrando que o anti-patriotismo é a nação que se deixa invadir e pode não
sobreviver. Todos surtam no corredor do eletrochoque, atirados ali e convencidos
que são culpados da própria demência .
Em Shock Corridor, Samuel Fuller ocupa lugar de destaque na
vanguarda cinematográfica, origem de seu exílio posterior, quando teve de emigrar
para a Europa depois de mais algumas incursões do seu cinema demolidor. Foi
arrastado para a televisão, onde fez coisas inomináveis de tão ruim e acabou
saindo dos EUA para que os chacais dominassem a Sétima Arte. Jogaram fora o
buldogue tenebroso fumador de charuto, que dizia mais ou menos o seguinte: “Não importa a
manchete, mas o quão alto você pode anunciá-la”. Fuller berrou. Seu grito se
ouve ainda hoje.
RETORNO - Imagem
desta edição: Peter Breck no corredor do eletrochoque.