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25 de fevereiro de 2012
PLUMA
Nei Duclós
Ela me pegou no pulo. Acho que foi o andar. Um jeito de jogar tudo para um lado, sem ser um requebro. É mais que um charme, é uma decisão do corpo que me caça.
O pé que sobra, do outro lado desse jogo que envolve algo mais do que a cintura, mal toca no chão, pois é feito de pluma. Ela roça o ar rarefeito da minha gávea.
As pernas não se ocupam do resto, não fazem parte do conjunto. Tem vida própria e balançam o vestido sem alarde. Tudo o mais que é dela caminha baixando a guarda. Finge que se resguarda, como se fosse possível, com aquela glória.
Todo dia a mesma hora. Uma boca quase sem batom, parece. Maçãs salientes de um rosto antológico. Nada em especial, claro. Não chama atenção, a beldade. A não ser a minha, grogue.
Mas eu não reparto o que me mata. Passo lotado, sento de costas. E espero que suma, a fantástica.
Costumam ver a beleza se houver destaque. Sair na foto, publicidade. Se for tela ou palco. Jamais quando passa por um átimo e nos derruba virando a cara.
Pior que não há como chegar, nem mesmo comentando o tempo. É inacessível, a que está ao lado. Você aposta: pronto, foi embora. Tenta se recompor, mas é tarde. Foste fisgado, pandorga.
De que falas? pergunta o vento. Dos amores que não alcanço, explico. É minha especialidade, disse ele. Sopro na janela dela, em vão, há séculos.
Sua blusa escassa, sua saia sóbria e curta, tudo nela é de uma prudente beleza, daquelas que te pegam sem querer e depois perguntam, inocentes, o motivo de tanta paixão.
Não sei para que tanto esforço se é para ser devorada, disse ele, cansado de esperar o fim da sessão de maquiagem. Essa é a idéia, disse ela, batendo a porta na cara.
É compulsório o encontro, pois temos compromissos que se cruzam. Tentei até mudar de corredor. Mas debruçada na grande janela de vidro,lá estava ela, sendo refletida como miragem no outro lado da cidade.
Que me adianta mudar de país se verei sempre seu andar de garça, seu respirar de fêmea, oculta em seus modelos beges, a jogar lances mudos sobre os ombros de escultura clássica?
Quando me dei conta, estava me olhando, a danada. E eu sonhando acordado, estava cego para o próximo xeque mate.
Assim fica difícil, malvada. Levo tiro antes de sacar a arma.
De repente, por força de sua presença, fui a nocaute. Acordei no paraíso, sendo sacudido. Era ela.
Noto o esforço que ela faz para chamar a atenção de um sujeito indiferente. Por que ocupo o último lugar da fila? Talvez pelo meu corpo de barro, rosto de pedras, olhar bizarro.
Fiquei sentado com meu embrulho de pássaros no colo. Ela olhava o horizonte, onde eu não me situava. Tentei assobiar, mas um avião rumo ao Nepal passou na mesma hora.
Ela acorda e vai direto ao poema. Lá encontra meu impulso e bebe sem que eu veja. Mostre o arrepio de teu braço, tonta de tanta beleza.
Você acha cedo? Pergunte ao sol quanto tempo esperou para inventar este dia. Pergunte à nuvem quanto demorou para dar o passeio. Cedo é você, estupenda.
Quando venho aqui já estou impregnado do teu beijo. Nasço toda vez que acordas. Sou teu jarro de flor, que regas de olhos quase adormecidos.
Passaste batom com firmeza, de uma cor imperceptível. Isso te deu um ar de mistério. Sabia que estavas diferente, mas achei que era outra coisa e elogiei o cabelo, que não cortas há séculos.
Bem mulherzinha, disse ela, fazendo chover. E eu acredito? Sim.
RETORNO – Imagem desta edição: Marisa Tomei.
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