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15 de fevereiro de 2012

GORKI E O POVO


Nei Ducós

Povo é uma palavra complicada no Brasil. Em inglês people significa povo e gente. Não existe essa diferença entre “nós” e “essa gente”, o povão velho de guerra. Fez-se toda uma política equivocada a partir do conceito de povo. País de escravos, todo mundo se acha senhor. Identificamos as pessoas pela exclusão. Governava-se para os ricos no Império e na República Velha. Na era Vargas, o governo em tese era voltado para os trabalhadores. A intensificação dos conflitos levou à ruptura de 1964, num golpe dado para evitar uma república popular ala Cuba. Foi o que se disse, pelo menos.

A partir da anistia em 1979, os intelectuais orgânicos (aparelhados pelos partidos emergentes) inventaram o termo populismo para afastar a ameaça da volta do varguismo via Brizola. Seria governar falsamente para o povo, traindo-o. A fonte era Getúlio, mas o fato é que o populismo surgiu com Jânio Quadros, um clone desastrado de Getulio que inclusive escandia as sílabas como no sotaque gaúcho. Jânio foi um líder de massas que surgiu sob medida para o anti-getulismo. Acirrou os ânimos por pura irresponsabilidade e ânsia de poder. Mas falávamos do povo.

Na literatura temos a explosão do romance dos anos 30, que até hoje impõe o imaginário do país, ou pelo menos impunha até a chegada da Tropa de Elite e Cidade de Deus, que explodiram a idéia de um país rural. O país daquele romance regional logo após a subida de Getulio ao poder em 1930 ainda sobrevive nas novelas das seis, mas nos livros deu lugar a uma mistura de tipos de todas as escalas sociais. Temos desde a classe média baixa e devassa em Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, até a explosão a partir dos anos 90, em que o caos urbano é representado pela mixórdia humana de todas as taras e dessintonias nos autores mais recentes.

Na Rússia do século 19, havia essa postura bem pensante dos intelectuais em relação à grande massa de camponeses e marginalizados das cidades, até que chegou Maximo,o Amargo, ou Gorki, que veio da Rússia profunda, do povo mesmo e mostrou que a humanidade a qual pertencia nada tinha de cavalheiresco ou nobre ou desprezível. Eram brutos, geniais, soberbos, mesquinhos. Humanos por toda a conta. No livro que estou comentando aqui, uma seleta de contos russos do século 19 publicado em 1964 pela Martins Editora, Gorki comparece com o conto O Acidente, que faz parte de sua brilhante memorialística.

Tive o privilégio de ler e fazer um ensaio sobre os três tomos das memórias desse escritor número 1 que são Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas Universidades. Texto magistral e enxuto, Gorki neste conto mostra como três rapazes embrutecidos fazem serviços pesados e caem na tentação do roubo e da mentira. E como expressam sua espiritualidade pelo avesso, ao serem contratados pela velha carola que lê a Bíblia enquanto eles pegam no pesado.

O narrador é o próprio Gorki, que sofreu horrores até ser aclamado como um gênio literário pelo povo russo. Há ainda o debochado e o ingênuo, ambos vítimas das péssimas condições de sobrevivência. Gorki mostra tudo sem fazer firulas. Precisamos desse exemplo para entendermos que fazemos parte do povo e não nos destacamos dele como se fôssemos os eleitos.


RETORNO – Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana

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