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17 de janeiro de 2012

UM CONTO CHINÊS: SOLIDÃO NÃO É OBRA DO ACASO


Nei Duclós

Família é nação. Quando o núcleo familiar se dispersa, as fronteiras são invadidas, a soberania se esvai e o país pode desaparecer. Hoje, não existe nacionalidade sem desconforto. Violência, miséria, corrupção, migração, guerra desestabilizam a cidadania expulsa de suas origens. É preciso resgatá-las no continente desconhecido, ou livrar-se da carga do passado que engessa as relações e impede a renovação familiar. Esse contraponto, entre o jovem chinês que vai à procura do patriarca para poder ter um lugar no mundo, já que seu projeto de casar foi interrompido, e o argentino de meia idade, que usa a orfandade para fugir do casamento, faz de Um Conto Chinês (2011), de Sebastián Borensztein, uma obra intensa.

O filme confirma o fato de o cinema argentino ser uma jóia da cultura contemporânea, uma arte em busca da serenidade. Que procura costurar a nação despedaçada intervindo onde interessa: no coração tornado seco que um dia, por força do destino e da solidariedade vocacionada, aflora para colocar as coisas no lugar. Nele, Ricardo Darin faz o papel do solteirão solitário e rabugento, Muriel Santa Ana a mulher que o ama e tenta conquistá-lo e Ignacio Huang o migrante chinês que foge de uma tragédia pessoal no seu país e fica perdido na viagem à Argentina.

O personagem do gênio Darin lembra o protagonista de O Homem do Prego, de Sidney Lumet, e que foi interpretado magistralmente por Rod Steiger. Sujeito metódico e irascível que trata mal a freguesia e que, ao contrário do filme de Lumet, tem um coração de ouro e é isso que o salva. Os pregos, as dobradiças, os metais de sua casa de ferragens representam a secura interior de alguém entregue a uma situação bizarra, a de se tornar desagradável para fornecedores e amigos. Órfão, o sujeito cresce mitificando os pais e se recusa a formar uma família, já que teve a sua destroçada. Mas seu conforto aparente será demolido pela presença do jovem migrante.

A aparição súbita do chinês no momento em que Darin curtia os aviões vira sua vida. Ele é empurrado para um convívio que detesta, mas aprende que essa busca por uma família que se perdeu desmascara as rotinas obsessivas que o aprisionam em horários rígidos para dormir e acordar, em refeições idênticas todos os dias, e o seu esforço para permanecer só com sua coleção de histórias bizarras. A fonte desse hábito está na guerra das Malvinas, tratada aqui com o desencanto e a dignidade merecidas, à altura do sofrimento do povo na época (1982).

A falta de sentido da vida está no fato de a guerra entre Argentina e Inglaterra ser um evento tão bizarro quanto a morte do casal que cai no precipício em pleno ato sexual devido ao entusiasmo e ao descuido provocados pelo êxtase. Ou a queda de uma vaca de um avião que interrompe uma sessão de noivado. Mas na vasta coleção de recortes de jornal, uma história está ligada ao migrante que dele se aproximou por obra do acaso. A coincidência aproxima os dois desenraizados e leva a um desfecho memorável .

A viagem do protagonista interpretado por Darin é de Buenos Aires em direção ao interior do país, ou seja, de sua aparência, de sua superfície gasta pela política e a economia destroçada para a grandeza da tradição e do prazer. Pular a cerca que o separa da felicidade é o gesto supremo de alguém marcado pelo sofrimento e que tem um olhar que mata, segundo a apaixonada admiradora, na mais contundente declaração de amor do cinema atual.

O diretor Sebastián Borensztein (nascido em 1963), que está na mesma faixa de idade de Darin (1957), é artista premiadíssimo, principalmente na televisão. Fez o filme do ano, que deve ganhar tudo, se ainda houver justiça no mundo. Nos leva de uma situação tristemente hilária para a emoção avassaladora do reencontro de personagens com seus destinos. Nos faz rir, nos faz chorar. Faz do detalhe a base da narrativa: cada pormenor se sintoniza com vários outros, para que as imagens confluam para o poder crescente de encantamento do roteiro. A vaca, o avião, a foto, assim como o prato típico ou o doce que identificam uma nação, são representações dos passos das pessoas girando num mundo aparentemente sem sentido.

O cinema amarra tudo ao coração que percebe poeticamente a grandeza na escassez e a glória no que parece ser um fracasso sem fim.

RETORNO - Imagem desta edição: cena de Um Conto Chinês.

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