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17 de setembro de 2011
NOIR
Nei Duclós
Pronuncia-se no ar. Não, Udo, não é rádio, é cinema. Noir se escreve com i, mas pronuncia-se a. É coisa dos franceses. Serve para batizar um tipo de filme americano. Sei lá porque os gringos não puseram filme nigga, talvez porque se usassem nigga teriam apanhado. Preferem usar palavra francesa, que é mais charmosa. Se tu disser, Udo, alemão batata, burrão, passe o alho em francês vai parecer uma coisa chic. Foi por isso que chamaram de noir naqueles filmes nos anos 30, 40 e 50, de detetive, tudo em preto e branco. É coisa de intelequêtual, sabe? Intelequêtual gosta de cuspir francês e pensar em inglês caipira. Eram filmes baratos, os caras faziam o que queriam. São Cult, como dizem. Muito apreciados. Por quê? Porque eram bem feitos, porra. Se tinha porrada? Tinha, mas não era filme de luta. Tinha tiro? Tinha, mas não era tiroteio. Eram dramas, intensos, entende? Claro que não entende, nasceste na roça, tens uns pés de pilão, mão de socá mio, como vais saber dessas coisas? Passe o conhaque, Udo, não domina a garrafa.
Soubeste do Nick, é, o Nicolau, aquele, lá da Dona Netti, assim com dois tês. Sabe que a Dona Netti se chamava Ambrosia? Quem deu o apelido, que pegou, foi o Nick. Ele era apaixonado por filme noir. Dizia que todos eram obras-primas. Vivia futucando arquivo morto para ver se encontrava alguma obra viva, que desse para projetar. É que ele tinha visto praticamente sozinho os filmes lá na adolescência dele. Como era um cara desse tamanho, fajutou uma carteira de estudante e entrava em sessão proibida para di menor. Sabia que ele queria fazer um festival desses filmes, quando tudo já tinha virado sucata? Ninguém sabia onde estavam. Nick achava que os filmes favoritos dele não cabiam em DVD. Tinha que ser no celulóide. Vê se pode.
Soube depois pelo Ricardo Videomarca, o publicitário que inventou esse sobrenome, que o Nick procurou a agência dele para promover o festival. Aí perguntaram: qual filme você já tem? Beijo da Morte? A Chave de Vidro? Alma torturada? Curva do Destino? Não tinha nenhum. Disse que tinha Scarface. Mas Scarface não é bem um noir, é filme de gangster, bem fajuto, gritaram para ele. Os caras da agências eram metidos, mesmo, viviam chupando reclame de revista estrangeira então sabiam. Nick ficou arrasado. Quase se matou. Sumiu de casa, deixando Dona Netti apavorada. Ela então foi até a polícia e contou para o inspetor Malden a história do filho louco e o detetive se condoeu.
Bem, Udo, tu que é metido a comedor sabe, se condoeu uma boa chonga. O cara queria meter na senhora desesperada. E deu uma busca em hotel barato. Encontrou o Nick com os canos furados de tanto se picar. Estava entregue, o desgraçado. Só porque não sabia o que achava saber mais do que os outros. Como o Malden estava a fim da mãe do cara, deu uma força. Freqüentou a casa, conseguiu um emprego temporário de escrivão numa delegacia bem afastada. Nem podia fazer aquilo, precisava de concurso, mas quem ia saber? Estava tudo em casa. Aí o Nick se revelou. Virou inspetor. Dava carteiraço. Mas nunca desistiu do seu festival de filme Noir.
Ele começou a bisbilhotar em jornal e montou uma rede alcagüetes que vinham lhe dizer onde tinha um acervo de filmes velhos, em cinemas que iam ser demolidos, em empresas falidas etc. Ia lá e arrebanhava tudo. Como os troços estavam em petição de miséria, contratou um véio especialista em laboratório, que foi recuperando o que podia. Como o Nick era como tu, Udo, um ignorantaço, foi aceitando tudo o que velho dizia. E o que velho dizia era o seguinte: veja isso, consegui fazer o serviço completo nesse filme. Era mentira. O véio só juntava uns pedaços de filmes aqui e ali e os rolos mostravam histórias sem pé nem cabeça. Como era tudo muito parecido, Nick foi engolindo.
Quando viu que tinha um monte daqueles filmes recuperados, alugou uma sala de cinema antiga, que estava numa pendenga judicial por causa de umas heranças. Conseguiu tudo na marra: a sala, o projetor, a segurança do local, tudo. E foi até a agência de publicidade, aquela que tinha esnobado ele, armado. Foi lá e obrigou os caras a fazerem um cartaz divulgando o festival. Exigiu também, já que ele era meganha, que colocassem notas na imprensa. E na noite da estréia do festival ficou esperando. Mas era muito longe a tal sala e ninguém queria mais saber de filme noir, velho, com gente de chapéu e cara feia, sendo preso, algemado, se vingando ou falando aqueles diálogos inventados pelos escritores policiais que ficaram ricos criando frases.
Só quem apareceu lá foi a Verônica Leite, lembra daquela loura gostosa? Já estava meio gorda, mas gostava de cantar e fazer mágicas. Nick ficou encantado com ela. Mostrou seus conhecimentos. Passou um filme, na sala vazia, só eles dois. A mulher estranhou que o assassino era descoberto logo no início. Começava como uma mulher dando tiro no outro. Mas isso não seria no final? perguntou ela e Nick rosnou. Mas se entenderam. Naquela semana do festival, viram todos, um por dia. Nick até deixou de ir à delegacia. O delegado então ficou uma fera e mandou ele embora.
Nick não se importou. Tinha a loura, tinha os filmes, tinha a sala. Tinha. Porque em seguida veio uma ordem e demoliram o cinema. Nick ficou na rua, abraçado aos rolos, com uma loura puta de companheira, que dormia o dia todo. É para tu ver, Udo, como são as coisas. Nick estava duro e tentou vender o festival dele. Bateu em tudo que é porta. Teve gente que quis ver. Caíram na gargalhada. Allan Ladd não é o promotor, é o matador, diziam. E Nick teve mais uma prova de sua imbecilidade, seu desconhecimento.
Pois tu sabe dele, Udo? Sabe do Nick? Pois mataram o cara? Hein? Tu já sabia? E eu aqui gastando meu latim. Quem? Tu o quê? E desde quando deste para isso, Udo? Porque a Verônica Leite era tua? É isso, Udo? Mataste de ciúme? Ah, teu investimento, teu ganha pão. O cara era uma ameaça. Porra, Udo, retiro o que eu disse sobre ti. Tu é um cara porreta, mesmo. Bem, estou indo. Me alcança…deixa que eu pego meu chapéu. Não, Udo, não faça isso, eu não vou contar para ninguém…juro! Udo, nãããão!!!
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