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4 de agosto de 2011
MESA POSTA
Nei Duclós
Comida era conflito. Perdiz escabeche, não confiável, até mortal, poderia ser contaminada pelo butolino, como diziam as pessoas mais velhas e ariscas. A sopa de trigo, intragável, aparecia na mesa uma vez por mês pelo menos para fortificar a gurizada (que era esquálida por natureza). Desistíamos da gororoba no meio do prato e íamos “lavar” o dito na cozinha, quando jogávamos a sobra farta no lixo. Havia ainda o repolho refogado, que diziam ser importante, mas nunca descobri a que veio. Acelga, xicória, rúcula, todas as verduras amargas, que se opunham às guloseimas servidas com parcimônia, para não desvirtuarem a infância. Mas havia vingança. A irmã subiu na escada e com um abridor rompeu o selo da lata de pêssego em calda e comeu até sair pelo nariz. Ou aqueles que xingavam as advertências contra os excessos e acabavam no sal de frutas.
Havia os quitutes super valorizados e que não eram grande coisa, mas como os adultos davam bola, significavam briga certa na hora da distribuição, quando alguém se sentia lesado, pois a oferta era pouca para a galhardia da demanda. O tutano quente misturado à farinha, sal e azeite de oliva, capturado com pão estalando, fazia a festa da moçada quando havia fartura. Mas se escasseava, era motivo para berros que se escutavam na outra esquina. As oferendas mais cobiçadas não ultrapassavam duas unidades para cada boca de passarinho escancarada. Pastel ou trouxinha, com massa torcida nas pontas parecida com um bombom recheado, jamais sobrava diante da devoração militante.
Como havia muitas fantasias em cima da comida, era permitido improvisar alguma coisa, como o churrasco matinal dos domingos, acompanhado de vinho branco e exclusivo das crianças no auge do inverno. O sagu que enchia tonéis. Ou a sobremesa, sempre a mesma, especialidade da minha mãe, que jamais acertávamos o ponto. Era preciso que ela, depois de muita insistência, nos apresentasse a tradicional iguaria e que chamávamos de “maldita” por pura vontade de perder a chance mas não a piada. E que consistia em gelatina com pêssego argentino de lata dentro e coberta de merengue. Uma maravilha.
Nossa refeição independente mais comum era bolachinha Maria com goiabada, acompanhada de refrigerante, nos pic-nics da Gruta. Para lá nos dirigíamos a pé, andando cinco quilômetros pela carretera, puxando o carrinho de mantimentos. Chegávamos no local para pescar uns lambaris, tomar banho proibido pelos mais velhos por haver perigo de afogamento e o lanche que era divertido demais para quem, como nós, partilhava a mesa rigorosa, dentro do horário e sempre completa, com sopa de entrada e depois a chamada “comida seca”. Garotos de um lado, moças do outro, os mais velhos próximos ao pai e a caçulagem grudada na mãe. Era lei.
O cardápio marcava os dias da semana. Lembro que nas segundas-feiras era sempre feijão, arroz, purê e guisadinho. Eu sacudia a perna de satisfação enquanto comia. Uma vez olhei por baixo da mesa posta. Meus irmãos faziam o mesmo. Não passávamos de uma matilha, que aquele casal criou com a eficiência dos estadistas e o afeto duro das terras complicadas da fronteira.
RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana.2. Imagem desta edição: obra de Bosch. 3. Não consigo postar nos comentários, mas quero responder ao Gerson: nosso guaraná era o da Antártica. Não sabia que existia Guaraná PO, só cerveja! Abs.
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