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19 de maio de 2011
A LEGALIDADE DO ERRO
Nei Duclós (*)
Língua chamada culta é o pacto social, o que define as relações de convívio numa nação. Pode haver mais de um idioma oficial no mesmo país, mas o que importa é o acordo comum que faz de cada cidadão uma fala regulada pela linguagem definida pelo cânone. Existem as gírias, as mudanças, os arcaísmos, os códigos, os regionalismos, mas tudo gira em torno do parâmetro, se refere a ele de uma maneira ou outra.
Se você determinar, primeiro como postura teórica, depois como lei, que cada um escreve como quer, então o pacto social irá se romper, abrindo a guarda para o caos. Não é apenas a dificuldade de comunicação que se instaura no atacado e no varejo, mas a interpretação das regras a partir do que é escrito. Se o que estiver dito estimula o erro, o deslocamento do modelo, então tudo pode. Se você não compartilha do mesmo entendimento com as pessoas dentro da mesma fronteira, então o conflito se generaliza, ainda mais quando há sotaques tão diversos e sinais explícitos de escorregões gramaticais que denunciam o status, a origem de quem diz.
É o que vemos hoje no Brasil: o conflito generalizado devido ao ataque sistemático sofrido pela língua culta em todos os níveis e nichos. Começa pelo sucateamento do ensino, denunciado por recentes dados divulgados pelo IBGE, onde o analfabetismo é hegemônico. E passa também pela reforma ortográfica, que muda substancialmente o acordo, colocando o país a reboque de Portugal, e vice-versa (eles também não gostam dessa promiscuidade; nossa língua é o português do Brasil, não o de Portugal; são diferentes, não muito, mas são). Quando eliminam hífens, acentos diferenciais, trema, se dá um passo importante para eliminar a crase, que é uma dificuldade necessária da língua culta, pois se facilitarmos tudo iremos cair na vala comum do patuá, do “nóis vai” e “nóis semo” (tirando assim, pela oficialização do erro, a graça do escorregão gramatical).
A crase mostra que a língua tem o poder de criar soluções para definir limites e esclarecer, mesmo que para isso seja preciso palmilhar o caminho árduo do estudo. Mas como só a ignorância é espontânea, o conhecimento exige suor e determinação. Quem se esforça para aprender a língua culta entende que tudo na vida se consegue dessa forma. Nada brota ou cai do céu. Mesmo a vocação, que é a graça dos dons herdados do berço, precisa de estimulo, trabalho, foco, metas.
Não se deve pensar que Cartola escreveu seus maravilhosos versos só porque tinha o dom. Ele fez o primário antigo e tinha lido Bilac e Castro Alves. Ou que tivemos a afinação magnífica do Trio Irakitan por motivos desconhecidos e não porque Villa-Lobos implantou o canto orfeônico como matéria obrigatória em todas as escolas públicas do país. Temos uma grande literatura porque todos os escritores foram educados na língua culta, com destaque para Guimarães Rosa, que enriqueceu a linguagem baseado na cultura colonial sobrevivente no sertão.
Não teremos país se insistirmos em detonar nosso patrimônio comum, a língua portuguesa falada e escrita no Brasil.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Explosion, obra de Salvador Dali.
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