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17 de fevereiro de 2011
SÍNDROME DO DESLOCAMENTO
Nei Duclós (*)
O gesto diz tudo na projeção ininterrupta promovida pela sociedade do espetáculo. Uma das tendências atuais, cada vez mais intensa e hegemônica, é a síndrome do deslocamento. É a técnica, ou a arte, de convencer o entorno de que não estamos exatamente naquele lugar em que nos encontramos. É uma questão de lógica, pois fazemos parte de uma aristocracia que ocupa espaços inacessíveis ao gentio, às pessoas comuns, aos adventícios e a todos os grupos que precisam ser marginalizados para ocuparmos o papel de protagonistas.
Vou dar um exemplo: celular no ouvido em frente a interlocutores usado de maneira compulsiva. É a maneira de ostentar que jamais estamos disponíveis para a fala direta, que é entrecortada pelas interrupções de gente do outro lado da linha, muito mais importante e digna de atenção. A pessoa jamais está acessível para quem fica na sua frente. Ela está acima da situação, conectado com algo maior, como os deuses do Olimpo, ou algo parecido. É também a imposição do ego e das coisas pessoais sobre a convivência com o coletivo.
Há muitas formas de “provar” que fazemos parte de um grupo selecionado e que não navegamos na maré alta da mesmice e das pessoas comuns. “Já falo contigo”, por exemplo, é uma frase muito usada quando estamos acompanhados por alguém invejável. É uma forma de dar um chega para lá em quem se aproxima, de deslocá-lo para a periferia para podermos continuar no centro do evento. É também uma forma de deixar em suspenso o outro que quis dizer alguma coisa. Damos uma pausa nele, como se faz no teclado do micro. Congela o próximo para que ele não ameace nossa presença, que não aceita concorrência.
Nos textos, a síndrome do deslocamento é muito perceptível. “Isso veremos mais adiante”: mais do que um recurso acadêmico, é a maneira de dizer que a atenção do leitor é inteiramente manipulada pelo autor, que assim fica amarrado ao fluxo analógico proposto. A advertência não faz mais sentido com o hipertexto e o universo digital. Tudo ao mesmo tempo agora: não adianta anunciar um artigo para amanhã porque não cola mais. Põe no ar e não incomode. Diga logo com todas as letras o que tem a dizer porque estamos ocupados demais para ficar esperando.
Esses hábitos obsoletos persistem mesmo que as inovações abram caminhos diversos. Já vi gente escrever que os computadores estavam “trabalhando a todo vapor”. Ou que dois marmanjos entraram numa “saia justa”, que é uma coisa do tempo do vestido apertado nos joelhos, onde qualquer contratempo poderia jogar a beldade no chão. Hoje, com as calças, os vestidos largos e as saias rodadas, é difícil que a justeza de uma peça de roupa possa ser parâmetro para uma situação delicada. A não ser nos encontros verdadeiros, em que o casal resolve aderir a estilos antigos para reavivar aquela velha emoção.
Recapitulando: a síndrome do deslocamento trabalha com a postura olímpica e marginaliza pelo gesto estudado e a fala sucinta. Alô, governador? Um momento...Ok, vou interromper a crônica. Depois falo contigo.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana, edição 328.2. Imagem desta edição: Looking Glass 1979, obra de Ricky Bols.
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