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23 de fevereiro de 2011
PASTELÃO X ESCATOLOGIA: CONFLITOS OPOSTOS NA COMÉDIA
Parece ser a mesma coisa, mas não é. E a diferença não é apenas a época em que cada gênero de comédia foi hegemônico: o pastelão na primeira metade do século 20 e a escatologia a partir dos anos 80. Um é oposto do outro. Vamos ver porquê.
O pastelão é o deboche dos pobres em relação ao desperdício e à opulência dos ricos, e, portanto, uma forma de fazer justiça. Acontecia em banquetes, festas, eventos, ágapes: a guerra das tortas e bolos era o resultado de um conflito entre algum penetra e os convidados, entre um outsider e os membros oficiais do acontecimento. Era luta de classes: o desempregado acabava desencadeando sem querer a guerra, por vingança, mal entendido ou algum outro equivoco. A briga se generalizava e contaminava todos os bem postos, que caíam assim na gandaia.
Era também uma forma de romper com o formalismo da cerimônia e de denunciar a superficialidade das relações humanas. Aproximava os contendores e os despia de suas fantasias sociais. Todos se igualavam com a cara branca de cobertura açucarada. O resultado era o fim do artificialismo e o encontro dos sentimentos verdadeiros, o amor que resultava num casamento muito esperado, uma amizade que não se pautava pelo dinheiro ou simplesmente uma afirmação da alegria diante da opressão social.
A fórmula é eterna porque funciona (há ligações fortes com a realidade)e se tornou clássica. É um gênero de cinema e é também um recurso muito comum na narrativa cinematográfica de todos os feitios (até mesmo da comédia escatológica, que tenta se confundir com o velho pastelão). Mas era pautada por princípios sociais que se desvaneceram com as duas guerras mundiais. A barbárie tomou conta e a excessiva concentração de riqueza, oposta à época de escassez do pastelão, determinou uma mudança profunda. Surgiu a comédia escatológica, cheia de nojeira, com as funções fisiológicas e as partes pudendas em destaque, com anti-heróis que procuram fazer rir com todo tipo de porcaria. O início foi naquela série do American Pie, em que universitários ricos se locupletavam na porcariada fisiológica.
É outro tipo de transgressão. Simplesmente é um deboche do excesso contra a escassez. Nada mais ridículo do que ser pobre, nerd, virgem, defeituoso. Então as cenas com porcarias servem para quem tem debochar de quem não tem. Há inúmeros exemplos. Os filmes “Esqueceram de mim” é típica.O menino abandonado numa viagem de férias é a inocência da riqueza, que se defende contra a vilania de dois ladrões pobres. A arma é a nojeira: melecas de todos os tipos e calibres caem sobre os infelizes como a dizer que uma fortaleza de milionários, ou de classe média alta, tudo pode contra o assalto dos despossuídos sem lei nem ética.
A escatologia, portanto, é o avesso do pastelão,pois promove a injustiça e nela se baseia. Não é por nada que o pastelão só nos deu gênios, de Chaplin a Stan Laurel e Oliver Hardy, enquanto a escatologia nos deu os execráveis Ben Stiller e Adam Sandler . É uma questão de lógica. Daqui a pouco ninguém mais vai agüentar vômito, peido, arroto em cena. E voltaremos a alguma forma de guerra de bolos, quando ríamos da riqueza injusta e adorávamos os caras que enfrentavam esses poderes com talento.
RETORNO - Imagem desta edição: Laurel e Hardy em ação.