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15 de fevereiro de 2011

A IMPIEDADE EM ELI WALLACH


Mau era o Jack Palance em Shane ou o Lee Van Cleef nos faroestes da Itália ou da América. Cínico era o Peter Ustinov em Nero. Histriônico era o Anthony Quinn em Viva Zapata. Mas Eli Wallach, nascido em 1915 e ainda na ativa, é tudo isso somado. Sua impiedade transcende a mera maldade. Ele não faz parte da humanidade: se coloca à parte, para gozar, bem instalado em seu exoplaneta, os sofrimentos desses seres frágeis e bizarros, os humanos. Basta vê-lo no papel do General em Lord Jim, como manobra com Peter O´Toole, tentando-o até a insanidade com sua lógica mais do que perversa. Ou como se diverte fazendo o bandidão Calvera em Magnificent Seven, quando tortura aldeões mexicanos e mata pistoleiros gringos. Ou como rouba o filme fazendo o papel do ladrão Tuco em O Bom, o Mau e o Feio, de Sergio Leone, atirando de dentro da banheira cheia de espuma ou traindo Clint Eastwood em todas as sequências.

Ele não é deste mundo e se realiza colocando toda essa impiedade contra si mesmo, como acontece na cena antológica de O Poderoso Chefão III em que se atira numa montanha de doces envenenados. Eli Wallach é o personagem permanente que gera sentimentos além da raiva. Contra ele, apenas a perplexidade diante de sua ousadia, de contrariar o comportamento considerado normal de mocinhos ou vilões. Ele é um território hostil além do limite. Sua gargalhada é uma epifania do Mal vitorioso, da vocação para a suprema vingança contra o equilíbrio das emoções. Por isso surge do deserto como uma praga egípcia. Provoca remorso sem remissão pois prova que não há saída para o horror de estar vivo.

Seu olho clínico fareja a inocência que se esconde em sociedades aparentemente perfeitas. É uma curiosidade de águia diante da alegria de destruir a presa antes de devorá-la. Ele se impõe na tela como uma calamidade pública onde não há mais espaço para a omissão. Ele fascina porque inventou esse imã que atrai as piores moscas da narrativa, lá onde apodrecem as vítimas de sua incúria e de sua tirania. Quando surge, aos 95 anos, em Ghost Writer de Polanski, é mais do que uma assombração. Sua aparição assusta pois o considerávamos morto, coisa do passado. Mas ele chega para derrubar a versão consagrada de um crime a aponta para as feridas do assassinato cometido no ermo. Temos medo não apenas desse velho que insiste em nos assombrar, mas pela dureza do mito, sua presença permanente e a prova de que não nos livraremos dele nunca.

Enquanto os careteiros profissionais descambam em suas carreiras cretinas, Eli Wallach cada vez mais ocupa o lugar de honra das grandes personalidades do cinema. Em papéis coadjuvantes em toda sua biografia,soube invadir o miolo do drama em personagens marcados para morrer ou serem desprezados.Não podemos esquecê-lo nem fazer pouco do que nos traz à tona: nossa precariedade infinita, mascarada por essa ilusão de que somos especiais.Somos bichos predadores e queremos sangue, diz Eli Wallach que, assim, pelo avesso, nos devolve o que temos de mais legítimo, a consciência de nossa alma que enxerga com a lucidez dos que sabem que vão morrer.

Eli Wallach. A impiedade que não permite que o mundo se afogue na falsa imagem feita para o auto-consumo. Se somos aquela parede velha de uma birosca do México, e sofremos a invasão de malfeitores armados com todos os calibres, é Eli Wallach que rebenta o tijolo e sai dele coberto de pó, com a cara transtornada de loucura, de revólver em punho, ao som do assobio inesquecível de Enio Morricone. É quando viramos os protagonistas de nossa imaginação, que estava prestes a afundar num charco de mediocridade.

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