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6 de dezembro de 2010

OS SEGREDOS DE HELENA


Nei Duclós

O romance de estréia Helena de Uruguaiana( Dublinense, 109 pgs.), de Maria da Graça Rodrigues, conta alguns segredos. Primeiro, da personagem, a adolescente que seduziu o primo rico, por ele sofreu a vida toda, foi mãe solteira e correu o mundo antes de se decidir pelo que realmente queria. Segundo, da cidade que escondia as relações fora da rígida sociedade da fronteira, a elite que acobertava os conflitos políticos da ditadura e viu a diáspora dos seus filhos nos anos de chumbo (principalmente do final dos anos 60 até a anistia).

E terceiro, do próprio romance, que revisita e atualiza, sem se enredar, os modelos de heroína da literatura (da clássica mulher de Ulisses, passando pela romântica Dama das Camélias ou a brasileira Lucíola). E o que é mais significativo: o segredo da boa literatura que circula, de maneira pessoal, entre paradigmas dos mestres do ofício (dos russos aos franceses), conduzidos para dentro da trama, que por sua vez é pontuada por orações recorrentes do catolicismo - uma religiosidade que usa a liturgia das palavras da missas para celebrar o amor impossível e definitivo.

Não é pouco para uma autora que chega com toda a humildade da estreante, mas com a segurança que surpreende e liga imediatamente logo no início. Confesso que tenho inúmeros livros na cabeceira, que vou lendo conforme as demandas do dia. Volumes pela metade, tramas ainda sem solução, propostas que acabam desviando minha atenção, cada vez mais precária devido à sedução de outros meios, mais luminosos e rápidos. Mas com este livro aconteceu o contrário. Deixei-o na estante por um tempo, sob o álibi de que precisava terminar o que tinha começado primeiro. Mas ao me decidir enfim pelas primeiras linhas, em pouco tempo me vi emocionado no epílogo.

Passei voando pelo romance como num galope. Não que a história de Helena seja leve e divertida, como num livro que se lê para depois esquecer. Mas porque as soluções encontradas para compor a história revelam uma estrutura bem acabada, com alicerce sólido, paredes honestas, telhado firme e janelas que dão para vários mundos. Aqui a viagem é um deslumbre não apenas para os conterrâneos, os uruguaianense como eu, que reconhecem em cada detalhe (as casas, os colégios, os campos de futebol, as ruas e avenidas, as fazendas) nossa identidade. Mas todo leitor pode enxergar com clareza o que é uma história bem contada, nesta época de tanta literatura envergonhada, onde se procura torturar o leitor sem lhe oferecer o principal, um motivo para se chegar ao final.

Tudo está aqui, neste livro primoroso. A tradição das famílias ancestrais, solidamente instaladas na propriedade da terra, no comércio bem sucedido, num cosmopolitismo de quem convive com nações estrangeiras na porta e, ao mesmo tempo, que se refugia na platitude de um status secular. Os carnavais, as reuniões dançantes, as festas, as formaturas, os vestidos, os ternos, os coques, as melenas. Também os namoros, os casamentos feitos e desfeitos, os filhos legítimos ou fora do esquema, as avós afetivas, as concorrentes maldosas. As pequenas e grandes traições, as brigas de vida ou morte, as viagens sem volta, as culpas e as anistias. Temos a terra, o cavalo, o passeio, os móveis, os casarões, os barracos, o rio, as sangas. E o amor profundo e sem remédio, a indiferença e a crueldade, o heroísmo e a vilania.E de quebra, os lugares e monumentos de Paris, o exílio, o desenraizamento, a distância. Tudo na medida certa, sem sobras, num texto enxuto, numa composição de orquestra de câmara que soa como os acordes de uma banda anônima num restaurante inesquecível.

Digo isso não por ser suspeito, pois meu nome está nos agradecimentos, generosos e exagerados, da autora, que trocou comigo alguns e-mails antes de publicar. Conversamos animadamente sobre o livro, mas eu não tinha noção exata do que se tratava. Há muita procura por conselhos neste mundo hostil da literatura pátria e costumo atender com prazer as solicitações. Às vezes me escapa a grandeza do que está sendo feito. Mas basta ter a obra nas mãos para ver que a autora, embora preste tanto tributo a seus professores de narrativa, tem a vocação poderosa e o talho certo para tão complicado trabalho. Poderia ter trocado os pés pelas mãos, poderia ter errado a maior parte do romance. Mas acertou em cheio e por isso merece ser celebrado como a grande estréia da literatura brasileira de 2010.

Digo sem medo de errar. Que minha percepção não estrague a surpresa nem abra a guarda para desconfianças, já que aqui não há bairrismo nem predileções. Leio com olhos livres e só me reporto ao que sei e sinto. Helena de Uruguaiana tem a fisga dos romances clássicos, mas sem ser um deles, pois as técnicas de narrativa de todas as idades se somam, sem que possamos percebê-las. Esse é o sinal mais evidente de competência: quando a autora revela os segredos sem cair na tentação dos truques.

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