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30 de dezembro de 2010
O AVESSO
Nei Duclós
Os lugares comuns entregam tudo, pois funcionam pelo avesso. Quem gosta de dizer fora de série, por exemplo, é adepto da mesmice. Quem te convida para jogar conversa fora tem pouco a dizer, já que desperdiçou tudo. Quem pergunta como vai essa força te considera fraco – e bate com veemência nas costas para ver se agüentas. Quem manda beijo no coração não tem nada na cabeça. Quem te abençoa sem ter cacife nem mandato para isso no fundo te deseja outra coisa. Quem faz questão de expressar respeito pela tua opinião despreza solenemente qualquer coisa que digas.
Vivemos no mundo pelo avesso, ou bizarro, como quer a cultura pop das comédias televisivas americanas ou dos comics. Nossas palavras se viram contra nós. Teus argumentos servem para te condenar. Tua biografia é suspeita. O passado é um cão de tocaia. As amizades sinceras acabam em alguma manifestação de ganância. Isso gera uma tremenda demanda no imaginário social. Disso se alimentam as ONGs, as campanhas de boa vontade, as doações e muitas vezes o voluntariado. Há felicidade em servir o próximo, vemos isso todos os dias. Mas o gesto em público muitas vezes contraria gestos domésticos, onde a mesquinharia impera enquanto na rua somos o exemplo de cidadania.
O problema é que essa postura pelo avesso dá lucro e às vezes é questão de sobrevivência. Quantas vezes não assumimos, mesmo sem acreditar nelas, posições que pertencem exclusivamente às corporações para as quais trabalhamos? Chegamos a dar nó em pingo d´água da consciência para justificar uma idéia, uma iniciativa. Quando saímos de um emprego que por longo tempo nos sustentou, podemos ver o quanto de nós era parte herdada daquele ambiente. Basta algumas semanas para vermos que nada daquilo nos diz respeito. Mas precisamos seguir em frente. Qual a próxima empresa que deveremos defender, apoiar e dizer sim para termos uma remuneração?
O sonho do negócio próprio tem muito a ver com essa necessidade de se dizer o que se pensa, de nos reencontrar. Mas costuma ser mais uma ilusão. Ao abrirmos uma portinha, ficamos à mercê de fornecedores e clientes. Todos são nossos patrões e gostam de dizer como a coisa funciona. Hoje, com a transparência das mídias sociais, há receio em se entregar totalmente, pois os empregadores ou parceiros gostam de saber o que você está aprontando ali. É uma ditadura velada, essa de seguir os passos dos indivíduos para prejudicá-los no cenário coletivo. A única solução é queimar os navios, botar para quebrar. A vida é curta e os bandidos se aproveitam de nossos limites para nos manter na soga.
Isso gera problemas, claro, como tudo. Mas se o sócio, empresário ou colaborador souber algo sobre liberdade de expressão, irá de fato respeitar tuas colocações, sabendo que somos contraditórios e escassos e que podemos mudar de opinião. E que não misturamos as coisas, pois podemos muito bem ajudar a expressar o que uma entidade precisa dizer sem que isso interfira no nosso direito de dizer tudo em outros fóruns.
É fundamental essa divisão de águas para deixarmos de lado o cinismo que no fundo é o que gera o pesadelo da linguagem, o uso excessivo de lugares comuns.
RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: cena do antológico (como todos) episódio de Seinfeld, em que Elaine se divide entre os amigos tradicionais e a versão bizarra da turma.
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