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11 de dezembro de 2010

CRÔNICAS DE MARCOS REY: FUNDAMENTOS DO OFÍCIO


Edmundo Nonato (1925-1999) é o cidadão que assumiu o ofício de escritor por meio de seu principal personagem, Marcos Rey. Autor de extensa obra, de romances a contos, de novelas de TV a scripts para o cinema, de farta literatura infanto-juvenil a reportagens, ele agora tem reunido num belo volume as suas melhores crônicas. O lançamento é da Global Editora, que gentilmente me enviou um exemplar, já que faço parte do time de apresentadores com um trecho de resenha publicado na grande imprensa no auge do preconceito com Nonato (ele seria “comercial” e não o que é de verdade, um tremendo escritor). Estou bem acompanhado pelo meu querido Antonio Hohfeldt (um dos primeiros a resenhar meu livro de estréia), mais Leo Gilson Ribeiro, Wilson Martins e Fabio Lucas. Timaço do qual me orgulho de fazer parte neste volume. A seleção e prefácio são de Anna Maria Martins, de largos serviços prestados à cultura brasileira e à literatura.

Feitas as apresentações, vamos à festa. Tudo pode ser dito desta primorosa seleção de textos que se presta às mais variadas análises, desde história do comportamento, memória paulistana, vida errante de um autor pelas redações e empregos em três quartos de século, mais perfis variados de todo tipo de relacionamentos urbanos e conjugais. Sem falar na galeria de heróis, vilões, beldades, empresários da noite e da comunicação, parentes, amigos, bêbados em geral, amores vãos, tudo misturado num mural gigantesco da vida coletiva brasileira no século 20. Uma preciosidade, como se vê, que dá aulas sobre o Brasil que fomos e que se foi para sempre, fato que ele reporta e se transforma num dos oradores magistrais do funeral da nação maravilhosa, gentil, feliz, dolorosa e grandiosa que um dia fomos e talvez jamais voltaremos a ser.


Tudo isso vale e quero que os estudiosos e leitores em geral tirem o máximo proveito de mais de 300 páginas de ouro que aqui aportam como um transatlântico numa baía tormentosa, de onde saem as multidões humanas que fazem parte da identidade do país. Mas eu prefiro abordar pelo que considero mais importante: Marcos Rey ensina os fundamentos da crônica. Ele praticamente entrega todos os lances e essa transparência faz deste livro um material de primeira grandeza para entendermos como se exerce esse gênero literário tão brasileiro, que desde os antigos cronistas evoluiu para a pena leve a maravilhosa de pessoas como Olavo Bilac, Machado de Assis, João do Rio, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, entre tantos outros.

Um exemplo: alguém sempre sugere que ele aproveite um fato para fazer uma crônica. Mas ele adverte que a crônica nada tem a ver com a realidade. Primeira lição: é tudo técnica narrativa. Segundo: mais importante que o script são os personagens. E quais são eles, além dos citados acima? Fundamentalmente ele, o narrador, e a esposa, que ao longo dos textos adquire vários nomes, exatamente para mostrar que ela não passa de uma personagem, que se adapta ao tema adotado. Depois existem algumas figuras recorrentes, como o anjo Odilon, aquele que nunca aparece e lhe consegue empregos; o melhor amigo, Lorca, companheiro de farras e confidências; o irmão maios velho, Mario Donato, diretor de redação que o introduz no jornalismo e lhe dá aumento exigindo que ele “cuide mais da mamãe”. E finalmente, a principal personagem ,a cidade de São Paulo, descrita nos mínimos detalhes em décadas de vida plena.

Definidos os personagens principais, são escolhidos os temas: o desemprego recorrente e sempre ameaçador, a aposentadoria vingativa, a memória debochada e sem auto-complacência, a vida profissional na televisão, na publicidade, no jornalismo. E o que é mais importante: cada crônica tem a dose certa de sacadas, de frases que complementam situações, de desfechos que nos remetem ao início depois de o autor espairecer aleatoriamente sobre vários itens. Podem ser encarados como truques, mas é puro conhecimento de como funciona a palavra sedutora que conquista o leitor desde a primeira frase.

Lemos estas crônicas de Marcos Rey com alegria, com deslumbramento, com vontade de ficar para sempre sem nunca chegar à última página. Uma vez encontrei-o numa feira do livro, me identifiquei, mas ele, no início, não lembrava muito de mim. Mas logo lembrou. Depois fiquei sabendo, por amigo que se deixou ficar um pouco mais no stand, que ficou aliviado por ter me reconhecido. “Viu só?” disse, orgulhoso, para sua companheira de feira, “como eu lembrei daquele jornalista?” Grande Edmundo Donato. Caio na tentação e digo que esse seria um tema para mais uma de suas crônicas, já que o admirador sempre aspira ao status de personagem nas mãos de um mestre desta ficção que é a vida real.

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