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18 de dezembro de 2010
CRIAÇÃO NO JORNALISMO: UM OBJETO SELVAGEM
Nei Duclós
Jornalismo é produzir (e não reproduzir) uma leitura dos fatos. E os fatos são versões das fontes. Produzir leitura é identificar uma lógica, um encadeamento nas evidências dos acontecimentos. Estes, são criaturas que nascem sob domínio de quem as emite, mas ao atingirem o status de jornalismo (a abordagem livre da manifestação adventícia) se libertam de suas origem, adquirem vida própria, já que assumem a natureza de uma outra linguagem. O relatório selecionado vira parte da reportagem, a conversa prolixa alcança a síntese da frase esclarecedora.
Por mais “concreto” que seja o acontecimento narrado pela fonte, será sempre uma versão à mercê do narrador. A testemunha ocular não faz história, é insumo para um nível acima, elaborado. O documento não é o fato, é uma representação dele. O depoimento , por mais sincero, sempre é fruto do filtro do depoente. Essas versões das fontes são os fatos. É também uma leitura, mas não é jornalismo, muito mais radical. O repórter/editor/redator/fotógrafo mergulha, filtra, organiza e divulga. Gosto de citar o exemplo de Rota 66, o livro-bomba de Caco Barcelos. Ele descobriu uma montanha de papéis num porão sujo da Polícia Militar, documentos abandonados ao longo de décadas de assassinatos de inocentes. Mentiu que queria organizar a bagunça, mas seu objetivo era fazer a denúncia.
Hoje a fotografia exibe muito mais poder nas mídias em geral, não porque haja mais espaço ou se manifestem muitos olhares absolutos de grande profissionais. Mas por te se intensificado a noção de que ler o gesto, o design do evento real, é decisivo para entender o mundo expresso na reportagem. E isso a foto se presta aparentemente sem intermediação. Faz ligação direta com a percepção, mas é também um jogo de gato e rato entre o que o fotógrafo vê, o que consegue mostrar e o que é visto e entendido pelo leitor. Há também a interferência de vários intertextos, que apoiam ou contrariam o que está sendo visto.
Esse jogo é mais complicado na palavra, que é cem por cento sugestão. Você não enxerga nada olhando uma letra. Só cria algo perceptível se usar a sintaxe, a língua consolidada, o verbo aparelhado. No impresso isso é um lugar comum, pois nesse ambiente fazemos distinção entre texto e imagem. Mas o texto digitalizado subverteu um pouco esse conceito, ou antes, revelou que a escrita também é imagem. Fica mais diluída a alienação do verbo (o significado pairando sobre a física dos signos) pois a palavra digitalizada transmutou-se na imagem de significados, também à mercê da leitura rápida e definitiva. Todos escrevem e fotografam. Brinca, e todos editam, diagramam e difundem.
É tocante a defasagem de articulistas que “preparam” o leitor para algo que virá depois, quando se sabe que podemos ler tudo ao mesmo tempo agora e não dependemos de arautos, exclusivistas ou bam bam bams. Costumo começar qualquer coisa, de notícia a romance policial, pelo último parágrafo. Não suporto a ansiedade de saber o que está escrito e explícito, e ser obrigado a, analogicamente, percorrer o fio de Ariadne do labirinto autoral. Com o desfecho sabido, a marcha das palavras fica livre do suspense.
Desvelar camadas de conceitos que soterram o ato de reportar desmascara o poder tanto das fontes, identificados com as próprias informações, quanto dos jornalistas, que acabam lavando as mãos em relação ao que conseguem acessar. Há uma terceirização geral, como se fazer jornalismo queimasse as mãos. Vai ver, queima mesmo. Tínhamos, e temos ainda, repórteres calejados e corajosos. A diferença é que hoje se mata mais jornalista. Estamos, como disse Greg Palast no seu célebre livro-denúncia, na “melhor democracia que o dinheiro pode comprar”, onde reina a pata possante dos poderes sobre a virtualidade das informações. Do nosso lado, tudo se dissolve no ar. Do lado de lá, só vem chumbo grosso.
Mas temos uma vantagem: o talento, graça de quem cria, que lida com um objeto selvagem no mundo domesticado, onde a linguagem virou um balcão de negócios.
RETORNO - Imagem desta edição: Athena tece.
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