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25 de dezembro de 2010

COMO NASCE UMA FAVELA


Há uma extensa área (meia hora de carro a 60 km/h ao longo do terreno) localizado entre o Rio Vermelho e a Barra da Lagoa, aqui em Florianópolis. É tomada por eucaliptos, pois, soube assim por cima, que há décadas o proprietário, um alemão, derrubou a mata nativa para poder faturar com o deserto verde. Hoje a floresta exótica (que divide algum espaço com a mata original) ou Parque Estadual do Rio Vermelho, está protegida pela Fundação do Meio Ambiente (Fatma), a entidade ecológica catarinense. Por ser um lugar que fica ao lado da grande praia de Moçambique, que é um esplendor, e por ocupar uma parte considerável do norte da ilha, que se povoa celeremente, é alvo de cobiças variadas. Já existem algumas invasões, mas o parque, em sua maior parte, ainda está fechado a uma invasão em massa. Pelo menos, até agora.

O que temos no Brasil? Favelização. A favela brota? Nunca, é implantada. Foi assim desde o início, quando doaram um pedaço de morro do Rio para ex-combatentes da Guerra de Canudos. Naquela época, fins do século 19, o governo não tinha como indenizar viúvas, famílias ou mutilados provocados pela carnificina. Resolveu então doar aquele trecho que não interessava a ninguém. O morro virou Favela porque esse era o nome de uma planta nativa do Nordeste que deu nome ao morro existente em Canudos onde lutaram as tropas republicanas. Em lugar de construir um bairro decente, amontoaram as pessoas e deu no que deu.

O que realimenta a favelização é o mesmo tipo de mentalidade, de política pública bizarra. Vimos no filme Cidade de Deus como surge uma favela monstruosa a partir de um projeto de urbanização dos anos de chumbo da ditadura. Trata de um cancro urbano que também implantado. Enquanto o governo vai empurrando a população para esses ajuntamentos apodrecidos, que crescem e acabam tomando conta das cidades exatamente porque é tudo feito de propósito, a especulação imobiliária cuida do resto. A indústria de imóveis inventa bairros fantasmas, cemitérios de concreto, para turistas ou para valorização dos imóveis. Quando mais área construída vazia, mais dinheiro estocado, que só tende a se multiplicar.

Ou seja, temos a desfaçatez do governo que se livra de um trabalho árduo, o de prover instrumentos de moradia para a população crescente; e a cobiça do empresariado predatório, que cuida apenas de lotear, construir e vender pelo preço mais alto o que antes era área pública. Um morador do Rio de Janeiro, ao visitar Florianópolis anos atrás, previu que todos os morros verdinhos que dispomos hoje serão tomados por favelas. Achei impossível na época. Hoje não tenho mais dúvidas.

O que fez o poder federal no caso da área referida aqui na Ilha, via Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional do Índio (Funai) e Secretaria de Assistência Social da Capital? Simplesmente deu licença para um grupo de 60 indios kaigangs vir de Iraí, do Rio Grande do Sul, e se instalar aqui com suas famílias. O álibi é perfeito. Há o apelo políticamente correto da “divida social” com os índios, como se fossemos culpados da mortandade ocorrida séculos atrás, sem levar em conta que somos quase todos descendentes deles, da cor de cuia da pele amorenada ao olhinho puxado de tanta gente. Há também o apelo do artesanato, pois em princípio eles vieram para vender o que produzem com as mãos, aqueles cestos, arcos e flechas para decoração. Um advogado local chamou a atenção dizendo que o poder federal passou por cima do governo estadual, dona da área, e da Prefeitura, que expede as licenças para vendas ambulantes no verão.

Mas a jogada está clara: foi aberta a porta para a construção de uma favela. Pois se os índios podem, todos os outros habitantes também. Já que é permitido se instalar, então o que impede a invasão? Existe até madeira plantada para os casebres! Por enquanto, os índios receberam licença para ficar até março. Mas depois virá o adiamento e o serviço estará feito. Virando favelão, poderá existir uma intervenção para “melhorar” as construções e aí entra de novo a especulação imobiliária, já que o terreno vai perder o status de área preservada. Não seria mais simples ter um projeto decente, viável, sem corrupção, para área tão importante, a criação de um bairro popular ecológico, com casas distribuídas por sorteio, e uma parte de mata preservada, em vez de usar esses expedientes?

O que parece é o velho esquema: deixaram uma área imensa vazia por muitos anos e agora que está hipervalorizada é hora de tomar posse. Para romper o selo, nada como uma invazãozinha. Quem iria reclamar? Quem é contra os índios? Aí está o truque. Ninguém. O que pode causar estranheza é a forma como o processo está sendo conduzido, em que poderes federais passam por cima de outros poderes para consolidar uma ação duvidosa, por mais socialmente correta que possa parecer. É uma questão de lógica, não de má vontade. Está claro. Teremos, se as evidências se confirmarem, a maior favela do município de Florianópolis. Cumpra-se assim a política pública pelo avesso, a que condena as pessoas à degradação ambiental e impõe a improvisação e os interesses ocultos como regra.

Pode-se argumentar: isso tudo é especulação, pois os índios vão sair mesmo em março. Ok, mas o precedente está aberto, isso é o que importa. Se não for assim, poderá ser de outra forma.

RETORNO - Imagem desta edição: árvores do Parque Estadual do Rio Vermelho. Foto Herminio Nunes, clicRBS.

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