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5 de agosto de 2010

MEMÓRIA E IDENTIDADE


Nei Duclós (*)

Memória incomoda quando o conterrâneo se afasta da cidade e depois se refere à sua origem entre suspiros de saudade. Para quem fica, é desconfortável ver seu ambiente ser identificado com o passado, desconectado completamente do mundo, como se este pertencesse apenas ao saudoso e não ao que continua no mesmo lugar, mas numa outra realidade. Há, claro, sobrevivência de hábitos, de prédios, de ruas, mas permanecer na cidade natal é um assunto penoso abordado pelos que emigraram, os que não vivem mais ali e se enchem de mesuras para o que não entendem mais.

Quando resgatamos o que se foi, é preciso ter o cuidado de não identificar as lembranças com a cidade de hoje, bem no miolo do movimento universal e contemporânea em tudo e, em alguns casos, bem mais avançado no seu aspecto civilizatório. Hoje, cidades médias para pequenas são as jóias da urbanidade, pois com a tecnologia estamos conectados com tudo e vivemos o fim daquele isolamento obrigatório que nos confinava no ermo. Não é mais preciso emigrar.

Mas é fundamental se relacionar de alguma forma com a memória, desde que não criemos ilusões sobre ela nem, num golpe de anacronismo, fizermos transferências equivocadas entre o que vivemos e a realidade do lugar onde nascemos. A cidade mudou junto com o mundo e é vizinha a tudo o que o outro acha ser exclusivo dele. O fato é que a memória se refere a um universo paralelo, o que convive conosco como uma presença determinante e não sabemos avaliar seu impacto no presente.

No meu caso, fico invocado com os primeiros quatro anos de vida, dos quais tenho imagens nítidas de cenas que permanecem. Sonhei esses tempos com uma praça em Uruguaiana que não existia. Quando estive numa das feiras do livro, me apresentaram as imagens desse local que mudou, deixou de ser praça e virou outra coisa. A cena estava enterrada em mim como um tesouro inacessível. Lembro de diálogos inteiros na minha família e eu era ainda de colo. E misturo mudança de casa, cronologias, imagens reais que talvez tenham sido apenas imaginação.

O que fazer desse acervo a não ser transformar em literatura, já que não domino a psicologia? É o que tenho feito. Aos poucos, aquilo que ficou forma um mosaico intacto, onde emerge a cidade em seu esplendor vista pela infância. Os desfiles, as roupas, os gestos, as personagens, as histórias, tudo conflui para uma grande celebração interna, muito mais rica do que qualquer romance. Esse é o lugar onde moramos sempre? Ou tudo não passa de invenção do texto, da crônica que procura cumprir sua tarefa, da vontade de compartilhar com os conterrâneos o muito que perdemos nos fios entrelaçados de uma vida longa?

Memória, emoção, vida: o tempo é a palavra coração. Nela carregamos o que há de mais precioso e não se trata de bairrismo ou saudade, mas de identidade, a que expomos todos os dias. Nela nos reconhecem, nós os habitantes da cidade que sumiu no tempo e convive com a existente hoje, como duas faces do mesmo rosto.


RETORNO - 1. (*) Crônica originalmente publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: "Santa Tereza I love you", de Ricky Bols.

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