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26 de agosto de 2010

LEBANON: A CÂMARA ESCURA DE SAMUEL MAOZ


Foi um deslumbramento quando descobrimos o principio da câmara escura num verão antigo. Estávamos dentro do quarto, com os postigos fechados, enquanto o sol martelava no quintal, fervendo as pedras. Nosso divertimento deveria ser alguma palhaçada, proporcionada pela obscuridade em plena tarde. Foi quando, de repente, movimentando-se pela parede, graças a um furo da janela, que projetava um rastro de luz borrada na parede, passou, na maior impunidade, nosso cão perdigueiro Pingo, que rondava a algazarra de um lado para outro, sem poder entrar. Olha o cachorro! disse alguém. Tínhamos descoberto o cinema.

Há milhares de anos se usa a câmara escura, princípio da fotografia e recurso ótico para pintores ao longo dos séculos. Na internet, vi uma experiência magnífica dos britânicos em Veneza, que cercaram pesadamente de cortinas as janelas de uma grande sala e deixaram entrar uma réstea de luz, que projetava cúpulas das igrejas da cidade em altas paredes. Um deslumbramento. O fato é que a imagem é invertida, como se a realidade se revelasse pelo avesso no lugar onde nos confinamos, como se a verdade fosse vista pelo seu oposto. Tudo é percepção neste mundo estranho.

O filme Lebanon (2009), de israelense Samuel Maoz, que ganhou o grande prêmio do Festival de Veneza no primeiro semestre deste ano, usa o mesmo principio da câmara escura para mostrar a guerra. Tudo é filmado de dentro de um tanque, onde quatro soldados, e depois um prisioneiro, dividem o horror que os faz vomitar, compartilhando uma sobrevivência escandalosa numa guerra vista com toda a sua crueza. “Não quis cair na ingenuidade ou no libelo, disse o diretor numa excelente entrevista para Paul O'Callaghan. Quis pegar o espectador pelo estômago e o coração”.

Como funciona o filme? O furo por onde entra a luz e a imagem selecionada é o visor do atirador do tanque. Ele enxerga os eventos tenebrosos de famílias massacradas, guerrilheiros suicidas, torturas e assassinatos, numa seqüência de fatos que enchem a câmara escura de horror. Lá dentro, como imagens pelo avesso, borradas no cenário do tanque, de paredes cheias de palavras de ordem, os soldados convivem com seus pavores, esperanças, divergências, pânico, dúvidas. Eles procuram, lá fora, sinais de uma chance de sobreviver, mas enxergam apenas a situação se estreitando e os deixando num beco sem saída.

A maior oposição ao filme foi dentro de Israel. As pessoas acharam que mostrar soldado chorando depõe contra a imagem do país, mas Amoz retruca que não há mais imagem depois de tantas denúncias sobre atrocidades. O que ele quer é convencer as pessoas da sua aldeia de que a guerra não é necessária, que deve ser evitada e denunciada Seu pacifismo é de resultados, trata-se de um militante audiovisual da paz, que se consagrou come esse filme impressionante. Rodeado pelos girassóis de uma plantação, que se estende ao infinito, as pessoas saem enfim do tanque. As flores solares representam a quantidade de maneiras de se ver uma batalha.

Encontram a paz? Não, mas se deparam com a diversidade do olhar. Se notarmos que a guerra é vista por uma percepção selecionada, que pode ser nacionalista, religiosa ou ideológica, é possível arriscar uma outra percepção. No caso deste filme antológico, trata-se da visão dos soldados brutalizados pelas ordens de um superior que os mete numa enrascada. Os chefes estão perdidos, a guerra é inútil e há mães em desespero querendo saber de notícias. Mas seus filhos estão morrendo numa carnificina sem sentido.

Os filhos assassinados são as imagens invertidas da versão oficial da guerra. Na câmara escura de Maoz, o interior de um tanque cavernoso, o que explode na visão é a defasagem entre a ilusão do conflito e a verdadeira essência humana, feita de dor, sangue, medo e a vontade de escapar dali com vida.

RETORNO - Imagem desta edição: cena de Lebanon - o interior do taque funciona como o estuário de imagens selecionadas que revelam o avesso da guerra.

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