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12 de agosto de 2010

INCEPTION (ORIGEM): OS CRIMES DO SONHAR


Nei Duclós

Toda a muvuca em torno do filme Inception (2010), de Christopher Nolan, com Leonardo di Caprio no papel principal, é inútil se não for colocado o principal: trata-se de uma história totalmente baseada no livro A Arte do Sonhar, do brasileiro Carlos Castaneda, que por muito tempo foi identificado como peruano e que tinha também Aranha no sobrenome. Nascido em 1935 em Franco da Rocha, interior de São Paulo, e criado pelo avô materno, ele migrou para Buenos Aires aos 15 anos pelas mãos do tio famoso, Oswaldo Aranha e depois foi para os Estados Unidos, onde escreveu uma obra de antropologia que mudou a cultura do nosso tempo.

Não desista de ler antes da minha argumentação. Sabe a Força, o Yoda, os guerreiros de Star Wars? Totalmente chupados da obra de Castaneda. Sabe Matrix, o pesadelo do real, em que a realidade é uma projeção virtual construída e manipulada pelo poder? Castaneda puro. Sabe Inception, em que é possível sonhar dentro do sonho e construir mundos paralelos com técnicas do sonhar? Isso é Castaneda desde o primeiro livro, Os Ensinamentos de Don Juan . Sabe Cobb, interpretado por Di Caprio, o principal sonhador? Trata-se de O Inquilino, um personagem assustador de A Arte do Sonhar, capaz de construir cidades, com pessoas dentro que podem até ter pensamentos próprios.

Castaneda não quis que o cinema se apropriasse de sua obra e por isso não deu o aval para ninguém. Esnobou Fellini, que ficou louco para filmar seu livro de estréia. Chegou a aceitar um encontro, mas desistiu, dizendo que o cineasta iria mudar toda a concepção da obra. Sobrou para os americanos, que chupam sem parar sem dar o crédito. É a segunda idéia roubada pelos americanos de brasileiros. O primeiro foi o avião. Roubaram a arte de voar e a arte do sonhar e os transformaram em crimes. Porque há uma diferença fundamental: Castaneda não é um difusor da cultura da morte.

Don Juan ensina Castaneda as técnicas do sonhar, que não é igual ao sonho comum. Trata-se de uma viagem no que o mestre yaqui chama de intento. Por meio do intento, é possível navegar na realidade vislumbrada pelo sonhar. Para conseguir dominar esse mundo, tão real quanto o nosso, é preciso primeiro olhar as mãos na hora do sonho. Aos poucos, e com uma vida impecável, o aprendiz de guerreiro vai se acostumando a andar, viver, e agir no mundo do sonhar. Mas com os americanos é diferente: basta tomar um sedativo poderoso para chegar até essas projeções que ficam em camadas abaixo do que chamamos de realidade.

Inception é uma ação incomum para os ladrões de sonhos, os que ficam tirando idéias e sonhares alheios em proveito próprio. É uma operação oposta e mais complicada: inserir uma idéia no sonhador. Para isso, é preciso acordar duas vezes em mundos diferentes. Nas duas camadas abaixo do real, trava-se uma batalha tremenda para convencer a vítima de que a idéia de mudar a corporação que vai herdar é sua. Para conseguir essa façanha, é preciso mobilizar uma equipe de especialistas, desde arquitetos do mundo virtual, que constroem cada detalhe do lugar onde acontecerá a inoculação da idéia, até falsificadores profissionais, que enganam as pessoas levando-as ao próprio mundo interior como se fossem externos a ele.

Parece complicado e muitas vezes as cenas nos confundem, mas nem tanto. Os americanos cuidam muito de sua indústria de cinema e fazem de tudo para deixar as coisas claras, por mais complicadas que sejam na sua concepção. Você acaba entendendo perfeitamente que nos três mundos trava-se a luta para conseguir o objetivo e tudo está acertado para que acordem todos ao mesmo tempo depois de chegar ao alvo. Para isso monta-se uma operação de guerra, que é interferida por várias dificuldades.

Como notou Ida Duclós (@BrazilTour no Twitter), tudo converge para um mundo irreal, considerado a verdadeira realidade: o sonho americano, uma Los Angeles limpa, um passaporte seguro, o reconhecimento da cidadania, uma família, um clima de paz e conforto. Os outros mundos são pesadelos. No fundo, é isso o que os americanos fazem: roubam os sonhos de todos e transformam o mundo num pesadelo, se reservando o único sonho que vale a pena, o da civilização que tudo pode. Aquela que fornece todos os elementos de vida plena para seus habitantes.

Um filme arrasador nas cenas de ação, complexo na idéia (roubada de Castaneda), com um roteiro bem amarrado. Um blockbuster de estilo. Nolan, que nos deu o Cavaleiro das Trevas, elogiadíssimo aqui, é do ramo, sabe fazer cinema. Mas deveria dizer que o brasileirinho que veio de longe é quem fez as principais revelações, herdadas de uma cultura ancestral que soube se adaptar ao mundo dos colonizadores e à modernidade. A fonte dessa sabedoria está em nós, os que vivem o pesadelo do real fora da América. Mas é lá que eles usufruem, com seus brinquedinhos ultra-sofisticados e sua máquina mortal de iludir as pessoas.

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