Páginas

30 de julho de 2010

O COPY DE 250 MIL DÓLARES: CINEMA É TEXTO


Copidescar 600 páginas em duas semanas ao preço de 250 mil dólares é uma pedreira tentadora que coloca o escritor contra a parede no recente The Ghost Writer (2010), de Roman Polanski. O craque das letrinhas foi convidado pela sua notória perícia em tirar leite de pedra, ou seja, transformar biografias medíocres de vidas famosas em sagas literárias de sucesso.

Neste caso, trata-se da autobiografia de um ex-primeiro ministro britânico, um Tony Blair genérico, que pretende, com o livro, intensificar seu marketing depois de deixar o cargo, um projeto que balança quando é acusado de crimes de guerra – teria entregue para a tortura da CIA cidadãos britânicos identificados como guerrilheiros afegãos (um deles é morto em função da prisão ilegal).

Há inúmeros interesses em jogo, além dos políticos. Principalmente da editora, poderosa, novaiorquina, que precisa de resultados (vendas), e tem pressa, já que foram investidos 10 milhões de dólares no lançamento. Há grande risco de tudo ir para o ralo, pois o autor do manuscrito (considerado mal feito) aparece morto, afogado, na praia de uma ilha perto de Nova York, onde tinha sido confinado para fazer o livro. O pior é que o afogamento está cercado de suspeitas sobre um possível assassinato, apesar de o caso ter sido engavetado apressadamente pela polícia. Os editores precisam de alguém brilhante, e rápido. Um copydesk de luxo.

Há interesse também dos assessores que cuidam da sobrevivência física e política do chefe. E de forças ocultas, que agem o tempo todo nos bastidores, enchendo o filme de mistério e suspense, manipulados com maestria pelo cara que já nos assustou bastante ao longo de sua magnífica carreira de cineasta.

Polanski trabalha como Edgar Alan Poe no conto célebre em que a mensagem secreta só se revela quando o pergaminho é aproximado do fogo, fazendo aparecer o texto oculto nas entrelinhas da mensagem oficial. Não é apenas o desfecho que encerra uma surpresa, mas a narrativa inteira. Toda certeza projeta sua sombra ou é resultado dela. O próprio ex-primeiro ministro (interpretado por Pierce Brosnan) é uma sombra de si mesmo. O verdadeiro ghost-writer, que aparece morto, que não tem rosto no filme, vira fantasma antes de terminar o trabalho. O copydesk (Ewan McGregor) é também um fantasma, que jamais aparece, pois seu texto está a serviço dos outros. Não é um escritor de verdade, como lhe diz a esposa do chefe, por sua vez uma apagada personagem de bastidores, confidente e orientadora da carreira política do marido.

Todos os personagens obedecem a essa lógica de um cenário palmilhado apenas por espíritos que andam. O ex-amigo dos tempos da universidade não é apenas um professor emérito especializado em democracia. Os empregados coreanos da mansão oculta na neblina ficam atrás das portas e deslizam pelos pisos de salas enormes e vazias. A chefe de segurança é a amante não assumida do patrão poderoso e convive com as alfinetadas da sua concorrente, a mulher oficial.

Mas o fantasma mais assustador é Eli Walach no papel do velho e solitário morador que tem boas informações no caminho da investigação do crime. Aos 95 anos, o ator secular e inesquecível faz uma ponta magnífica, encarregando-se de grandes frases, como esta: “Não tenho mais idade para perder tempo com a polícia”. O script, de autoria de Robert Harris, super bem trabalhado, tem sacadas hilárias como a do acusador tranqüilizando o copy de que não será assasinado, já que seu antecessor já teve esse destino: “Eles não podem afogá-los como se fossem gatinhos”, diz.

O filme é texto. Personagens escritos para aparecer de determinada forma se revelam opostos quando iluminados por uma leitura livre. Isso não significa que a narrativa se enreda em pormenores fúteis de falsos suspenses. Como se trata de uma investigação de crimes, é preciso que a ética esteja sempre presente e de maneira transparente, Por mais ameaçado que esteja o escritor, ele sempre diz o que está fazendo. Quando mente, é pego em flagrante.

É da essência da profissão. Você não pode mentir, sob pena de perder o contato com sua arte. Mas neste mundo mau, todos mentem, inclusive ou principalmente quem escreve. A não ser que o autor consiga enfrentar o pesadelo usando seus códigos para difundir a denúncia. Mas cuidado, que há um carro parado logo ali adiante e ele pode acelerar assim, de repente, e vir com tudo. Ou alguém atrás de uma coluna pronto a empurrar o perguntador no meio das ondas.

RETORNO - Imagem desta edição: momento culminante de "The Ghost Writer", em que Ewan McGregor, no papel do escritor, revela que matou a charada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário