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3 de junho de 2010
O GADO IDEOLÓGICO
Ideologia deveria ser instrumento político de pessoas esclarecidas, mas não passa de disputa de osso no festim da sobrevivência. Perdeu seu encanto quando pertencia à utopia e não passou no teste do poder. No fundo, a ideologia pregava o que afinal se concretizou nos governos gerados por ela. E não falo apenas da chamada esquerda, mas de todo o espectro do rebanho das idéias aparelhadas, a serviço de uma práxis sinistra. Será incompetência das idéias que forçosamente abrem a mão da ética que tanto pregaram no momento em que sentam em qualquer trono? Ou será que os indivíduos conseguem apenas passar um verniz ideológico na brutalidade que é a nossa essência?
Hoje a ideologia atingiu o mais alto status da cretinice. Você não pode virar para o lado que será acusado de alguma coisa. A ideologia tenta formatar uma coerência entre a causa palestina e o Chavez, ou o massacre da flotilha da paz e o imperialismo. Denunciar o morticínio de um lado significa que você optou pelo adversário. Se bater em Dilma, te serram. Se bater em Serra, te limam. Não é apenas voto útil, é vida inútil. Para que pensar se no fundo temos de obedecer à partilha do pirão na fogueira ancestral da obscuridade? Para que tanta formação, leitura estudo se somos incapazes de nos emocionar ao vivo, na comunhão do mesmo território?
A verdade é que somos gado da ideologia. Estamos indo para o matadouro do espírito, porque tudo foi explicado, justificado. Todos sabem de antemão o que qualquer evento significa, basta seguir os sinais exteriores. As evidências de nada servem. O que vale é o lugar onde você ocupa no front. Esse é um assunto cavernoso, que fez grande estrago quando o cineasta alemão Uli Edel lançou Der Baader Meinhof Komplex, que foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009.
É um tremendo filme, com produção caprichada e pesada, que resgata a luta de alguns cidadãos de classe média que encarnaram a vanguarda da luta anti-imperialista no final dos anos 60 e acabaram caindo para a clandestinidade da guerrilha. Foi mais ou menos o que aconteceu no Brasil e em várias partes do mundo, no Uruguai com os Tupamaros, entre muitos outros exemplos. Na época fazia sentido: todos os canais normais se fecharam com a sucessão de ditaduras e a saída foi apelar para a ignorâncias. Era a guerra contra os invasores do Vietnã, os crimes do Oriente Médio, a dominação da Europa pela América vitoriosa etc.
Hoje, visto isso tudo de longe, perguntamos: existe condições de mostrar como realmente foi? Senti no filme um clima de anacronismo, em que os terroristas se misturavam à rebelião dos costumes, com a revolução sexual cruzando com a guerrilha, o que em tese daria charme aos lutadores. Mas o cinema está vivo no filme. O que se vê na tela é o morticínio, a brutalidade, a radicalização crescente de algumas pessoas que se enfrentavam diariamente por motivos de idéias e métodos e que acabaram na prisão, mortos em sua maioria.
Houve uma reação violenta contra o filme na Alemanha, em que os descendentes das vitimas do grupo se insurgiram contra o apoio dado pelo governo alemão à obra, que teria desvirtuado os fatos. O problema é que jamais poderemos reproduzir os fatos, seja num filme, num livro ou por qualquer outro meio. Como cansei de falar aqui, a História não pode ser vista a olho nu. História é fruto de pesquisa, análise, interpretação. É produção de pensamento e não frame para a testemunha ocular.
A queda do muro de Berilim em 1989, marco da mudança do mundo, desmoralizou toda essa luta, ou ela subsiste com a mesma embocadura? Vemos a guerrilha do narcotráfico ativa, as radicalizações imperando por todo o lado, mas aparentemente vivemos num embate de idéias, mais do que confrontos armados, mesmo que a violência continue. O recente episódio do assassinato das pessoas que queriam romper o cerco criminoso de Gaza e a manipulação da informação por parte dos algozes me levam a pensar que afundamos cada vez mais nas contradições e jamais seremos capaz de virar este jogo. Os ataques terroristas dos dois lados do conflito na sucessão infinita de revides, e a mesma disposição do lado palestino de querer impor percepções sobre as tragédias, nos levam para a mesma conclusão. O fato é um só: matou? Perdeu a razão, seja de que lado for.
Resta revisitar o charme de lutas anteriores e firmar posição em cima de ideologias engessadas? Ou acreditaremos que a paz na diferença poderá triunfar, desde que acordemos para a necessidade de jamais apoiar o assassinato, por qualquer motivo ou justificativa. Abaixo a morte, viva o amor ao próximo, alimento de um Deus que oferece o mito do corpo sagrado, impondo a convivência harmônica e o espírito habitado.
RETORNO - Imagem desta edição: cena do filme "Der Baader Meinhof Komplex". A metralha no miolo do "debate".
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