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27 de março de 2010

A MONSTRA



Meryl Streep confunde a imprensa. Foram 13 ou 16 indicações ao Oscar? Ganhou só dois, um por "A Escolha de Sofia" e outro por "Kramer x Kramer". Deveria ganhar mais. Comete erros, como "Mama Mia", onde quis ser a Madona. Mas 99% do trabalho dela é gênio. Está na categoria dos monstros, aquele tipo de interpretação em que o ator se transforma numa criatura assustadora.

Foi assim em O Diabo Veste Prada, quando a bruxa da moda massacra uma pobre Anna Hattaway,atriz engolida junto com seu personagem. E é assim na sua magistral interprtação em Julie & Julia, quando encarna de Julia Child, a mulher de diplomata e de família rica do interior dos Estados Unidos que disseminou a gastronomia francesa em terreno estéril, a cozinha americana, onde o frango frito do fast food da esquina substitui o chato trabalho de fazer comida.

Talvez Julia Child seja a responsável por essa frescurada de reunir amigos para ágapes onde se elogia os pratos e “um bom vinho”. Esse tipo de evento, que é um rodízio de vaidades, substitui o fraco desempenho doméstico da família moderna, mais preocupada em aparecer para os outros do que trabalhar o que tem entre quatro paredes. Mas não tenho certeza. O que é certo é que Meryl Streep compôs a personagem na sua intimidade extrapolando o que aparece na televisão, num programa de culinária, para o que imaginou ser a vida “real” de Julia Child. Os cacoetes verbais e gestuais que foram vistos por milhões por muitos anos na telinha ganham vida e cor própria na luta da mulher que procurava uma ocupação na Paris dos anos 50.

Como costuma fazer normalmente, Meryl Streep devora quem a acompanha na sua performance. O marido cordato interpretado muito bem por Stanley Tucci (um ator apropriadamente apagado) ou a blogueira que a admira (Amy Adams) praticamente somem do mapa e o que aparece é a monstra o tempo todo, apesar de o filme ser bem divididod em dois tempos, um de 50 anos atrás e outro deste século. Numa entrevista para o Telegraph, Streep conta como entrou em conflito com a pessoa que inspirou seu personagem neste filme, que estaria a serviço do agribusiness e não atendeu um pedido para apoiar a agricultura e a alimentação orgânica.

Streep jura que admira Julia Child, mas sua performance magistral fundada numa caricatura (a performance televisiva da cozinheira famosa) não seria uma doce vingança pelo que o ídolo aprontou há vinte anos? Talvez, mas isso não tira o mérito da interpretação. Julia Child jamais seria a favor da comida orgânica, já que adorava tudo o que é considerado pecado contra o colesterol, como fartas porçõe s de chocolate e manteiga. Mas o que é admirável nos americanos é que eles não deixam nenhum ídolo solto, à mercê dos detratores. A indústria do cinema sempre dá um jeito de encontrar grandeza em tudo. Neste caso. Streep elogia a determinação da mulher que inventou uma profissão e aguentou tranco da perseguição ao marido proporcionado pelo macartismo. Nada demais. Falar mal dos republicanos agora é moda na era Obama.

Lembro de um filme de 1953, The President's Lady, em que Susan Hayward interpreta uma primeira dama mal afamada. Pois o filme limpa a barra da ilustre senhora, pois é assim que eles fazem: jamais permitem que o país, base da sobrevivência da população, seja atingido em sua honra. Aqui, só falta rebatizar o aeroporto Santos Dumont de Irmãos Wright. Tudo é possível, depois que substituíram o nome do aeroporto de Salvador, que era batizado com a data heróica da vitória brasileira na Guerra de Independência, Dois de Julho, e agora tem o nome do filho do ACM.

Lá a pessoa pode ser uma cozinheira de televisão cheia de maneirismos que eles não deixam barato. Podem até debochar, como acontece num quadro humorístico apresentado no filme, mas no fim das contas retratam a dignidade da pessoa que criou um caminho na gastronomia, levando oito anos para lançar seu primeiro livro. Deveríamos imitar os americanos nisso e não no frango frito comprado no fast-food da esquina.

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